Uma amiga me procurou esses dias contando que quer escrever um livro sobre um artista incrível que conhece, mas precisa de ajuda. “É que nunca fiz nada parecido”, argumentava. Respondi dando ânimo, dizendo que podia contar comigo, e acrescentei, meio de brincadeira meio a sério: “Normalmente é assim mesmo, até fazer pela primeira vez uma coisa, uma pessoa não sabe como se faz”.
Disse a ela que o barato de construir algo tão subjetivo como a biografia de alguém é que cada pessoa faz de um jeito, cada um cria o seu método - na verdade, vai aprendendo a fazer conforme vai fazendo. E erra, e volta, e se odeia, e se sente incapaz, e pensa em desistir (e desiste por um tempo, depois retoma), e um dia entende que precisa terminar aquilo para começar outra coisa. E termina, e fica feliz e triste - feliz por ter acabado o projeto, triste porque nunca a concretização chega perto do idealizado. E então vai fazer outra coisa, de preferência algo que ainda não tenha feito.
Depois de cinco anos, uma pandemia e muitas dúvida e incertezas pelo meio, terminei algo que nunca tinha feito e que não sabia se sabia fazer, um perfil biográfico. Yamandu Costa - violão sem fronteira foi publicado esta semana em formato ebook em três idiomas (português, inglês e espanhol) e no próximo semestre sai como livro físico. É, basicamente, a tentativa de fazer um retrato de uma pessoa por quem sinto admiração e curiosidade.
Eu e o Yamandu Costa somos nascidos no mesmo ano. Toco, muito sofrivelmente, violão. Lembro de ver as suas primeiras aparições na televisão, com 18 anos, e pensar que enquanto eu estava perdido, sem saber que caminho seguir na vida, existia um cara da minha idade que já era um dos melhores no que tinha escolhido para fazer. Comecei a acompanhar a sua carreira, ir aos shows, e cada vez mais me interessar pelo seu trabalho e sua história.
Em 2019, quando soube que o Yamandu tinha se mudado para Lisboa, procurei-o. Pedi uma entrevista pensando em escrever algo sobre ele. A nossa primeira conversa não foi muito proveitosa, ele parecia muito mais interessado em falar sobre outros assuntos do que sobre si. “Isso eu não lembro”, “não sei”, “faz tanto tempo”, foram algumas das respostas que ouvi. Percebi que para saber mais sobre o Yamandu precisaria recorrer a terceiros. Ele se mostrou disposto a me colocar em contato com quem o conhecia bem e pudesse me contar histórias suas. E foi assim que durante anos, pouco a pouco, a partir do que me relatavam pessoas próximas (a mãe, a ex-agente, o grande mestre, dezenas de amigos e parceiros musicais, personagens que cruzaram o seu caminho), do que lia em jornais e revistas, e do que via e ouvia nas vezes em que nos encontrávamos, foi se desenhando para mim esse rosto que buscava.
Ao longo do processo percebi que um retrato também revela muito de quem o faz, que quando olhamos para a vida de alguém também estamos olhando para a nossa vida - as nossas inquietações e curiosidades foram forjadas a partir das nossas vivências, partimos sempre do nosso ponto de vista, que é único, singular e caprichoso. No final, entendi que muitas das perguntas que eu queria que o Yamandu e pessoas próximas respondessem também eram perguntas que eu estava fazendo a mim mesmo.

Ao terminar a tradução do livro para o espanhol, o escritor, editor e meu amigo pessoal Alejandro G. Schnetzer, me escreveu dizendo o seguinte: “A linguagem pode contar a história de Yamandu, na sua forma externa, nas suas circunstâncias e aparências, mas não alcança nem remotamente explicar o músico na sua lide (combate) com o absoluto. Diante da música, a linguagem se rende, é somente um pobre instrumento”.
Entendo e concordo com o que o Alejandro diz, qualquer pessoa que veja e ouça com atenção o Yamandu tocar por cinco minutos terá entendido mais sobre ele do que lendo as mais de cem páginas que escrevi. O que o Yamandu fala através das sete cordas do seu violão não é traduzível em palavras. “Precisaria de um tinteiro do tamanho do Vesúvio”, diz-se ter dito Melville enquanto escrevia Moby Dick. Ainda assim, sabendo de antemão que era uma batalha perdida, que por mais letras que enfileirasse não alcançaria um acorde do violão de Yamandu, terminei o perfil que me propus a fazer, e que começa assim:
DIAPASÃO
A disputa se encaminha para o final, Yamandu e o adversário levam mais de meia hora naquela partida de bilhar e parecem não ter muito interesse em que ela termine. Durante o jogo a conversa tomou o caminho da nostalgia, falaram dos defeitos que o corpo, a partir dos 40 anos, começa a apresentar - tal qual um carro que precisa ser constantemente levado ao mecânico; refletiram sobre a importância de perder peso, alimentar-se de forma mais saudável e fazer exercício físico; reclamaram do duro que nos últimos tempos se tornaram as ressacas (durante o jogo bebem água com gás, o músico parou de fumar) e desabafaram sobre as relações conjugais. O violonista então se inclina sobre a mesa, parece que vai jogar, mas recua. Volta a se endireitar, pousa o taco no chão como se fosse um bastão e, como quem anuncia uma descoberta, diz: «Parece que a vida vai ficando cada vez mais chata, não é?». E então, sim, repete o movimento, aponta e dispara. A bola branca passeia sobre o tapete verde, percorre boa parte da mesa até se chocar com a preta. Os dois observam o movimento das esferas, mas parecem um pouco alheios ao desfecho da jogada. A frase de Yamandu ainda ecoa, convocou a uma visita ao passado, abriu um enorme baú de onde começam a surgir lugares, pessoas, histórias e momentos da vida do músico que vão passando diante dos olhos de ambos.
E termina desta forma:
ECO
Uma das primeiras lembranças que Yamandu tem da vida está relacionada com a música e o violão. Calcula que teria entre 4 e 5 anos no dia em que aproveitou um descuido do pai e esteve sozinho, pela primeira vez, diante do instrumento que já lhe causava fascínio. «O meu pai tinha medo que eu e o meu irmão estragássemos o violão e então sempre o guardava em cima de um móvel alto. Mas naquele dia, por algum motivo, deixou-o sobre o sofá e saiu da sala. Eu me lembro de ir até o violão com a mão fechada e abri-la sobre as cordas, tentando imitar o movimento que via o Yanel fazer. E me lembro de ter tirado algum som daquilo e ter ficado satisfeito com o que escutei». As frágeis unhas da pequena mão tocaram o objeto mágico, que emitiu um som. Que reverbera até hoje.
Enfim, Yamandu Costa - violão sem fronteira está publicado e eu estou feliz e triste, mas, sobretudo, em paz. Convencido de que foi o melhor que eu poderia ter feito. E certo de que esse livro, como ele é, só poderia ter sido escrito por mim. Outras cem pessoas podem contar a vida do Yamandu e a contarão de cem maneiras distintas. Algumas o farão melhor, outras pior, nenhuma fará igual. A fórmula que usei só serve para mim e só servia para esse livro, expliquei à minha amiga. E incentivei-a a começar o seu projeto para descobrir a sua maneira de fazer.
Que legal!!! Eu acho que devo ter visto Yamandu pela primeira vez na Hebe ou na TV Brasil! Adoro tb uma apresentação dele com a Mônica Salmaso (que eu amo demais) tocando Odeon no you tube. Eu amei que esse texto vai me ajudar a terminar um rascunho que tenho há uns dois meses sobre um disco que amo, mas que tem dado trabalho (e agora sei )por causa do medo de estar falando seriamente sobre ele - e tantas outras pessoas já o fizeram com excelência. O curioso é que a minha experiência com ele tem a ver com uma bilhar na esquina da minha casa e eu era espectadora exatamente dessas conversas em volta da mesa e dos tacos.
Parabéns pelo livro! Lerei!
Parabéns pelo novo trabalho, Ricardo!