Esta semana, vasculhando na ótima (e além de tudo gratuita) plataforma CaixaFórum+, me deparei com Narciso em férias, documentário do Renato Terra e do Ricardo Calil sobre a prisão do Caetano Veloso em 1968 durante a ditadura militar. Não faz muito tempo tinha ouvido uma entrevista do Renato Terra para o podcast da Companhia das Letras e me identifiquei com várias coisas que ele conta sobre o seu método para fazer entrevistas. Diz ter aprendido muito com o Eduardo Coutinho e com o João Moreira Salles, como por exemplo ter na cabeça os tópicos mais importantes do que quer perguntar, mas não fazer disso um roteiro fechado, muito menos ter na mão um papel com uma lista das questões que tem para fazer. Claro, ninguém se empenha muito em contar uma história se a pessoa para quem ela está contando não está prestando atenção, só está à espera de que ela se cale para lançar a próxima pergunta.
Sobre a entrevista ao Caetano, conta o Terra que estava muito concentrado no que o músico dizia e como ele dizia (os gestos, as expressões, o tom da voz), e que media muito bem o momento de interrompê-lo. E acrescenta: “Às vezes uma pergunta curta, do tipo como assim, por quê, onde, pode ser muito melhor do que uma longa elaboração do entrevistador, que pode perder o raciocínio do que estava contando”. Isso se percebe no filme e é um grande acerto. Para lembrar um episódio traumático e que aconteceu há décadas uma pessoa precisa de ter tempo para puxar as lembranças e encontrar as palavras para contar. Muitas vezes o trabalho de quem entrevista é “só” isso, saber escutar, respeitar os silêncios, não interromper. Parece fácil, só parece.
Já tinha vista Narciso em férias quando saiu (2020) e agora revi prestando atenção nessas pausas, nesse fluxo da conversa, lembrando do que o Terra contou na entrevista que ouvi. Gostei ainda mais do filme, acho que porque tive melhor noção da dificuldade que foi fazer um documentário que parece ser muito simples. No final das contas, o tempo todo é só uma pessoa, sentada, lembrando e falando (e às vezes fazendo silêncio). Só que essa pessoa é Caetano Veloso e está contando um acontecimento fundamental na sua vida.
Entre 2015 e 2020 fiz uma série de entrevistas longas a escritoras e escritores de língua portuguesa e espanhola para o livro Sobre a Ficção, que foi publicado pela TAG, um clube de assinatura de livros, bem no começo da pandemia. Isso fez com que eu falasse muito pouco sobre ele, não fizemos sessões de apresentação e nem participei de conversas em eventos literários. No ano passado, esse livro, com algumas entrevistas acrescentadas, foi publicado na Espanha, com o título Simuladores de vuelo, e tive finalmente a oportunidade de conversar com as pessoas sobre ele. E foi nesses encontros, ao responder perguntas sobre o livro, que fui percebendo melhor o método que desenvolvi para fazer as entrevistas. Acho que aprendi muita coisa “na raça”, fazendo e errando, mas me lembro de ter ouvido o Ruy Castro e o Eric Nepomuceno, entre outras pessoas, darem dicas que muito me serviram.
Conto brevemente o formato que desenvolvi para fazer as minhas entrevistas e o que aprendi nesse processo, mas antes faço três ressalvas: (1) O que serve para mim pode não servir para outras pessoas; (2) Entrevistas por escrito têm, ou pelo menos podem e devem ter, um tempo e uma lógica muito diferente das feitas para rádio e/ou televisão - talvez se aproxime mais do documentário; (3) Não é o mesmo entrevistar um político acusado de corrupção do que um artista que lança novo trabalho, há entrevistas que obrigatoriamente têm de ser mais duras, em que o entrevistado deve ser confrontado.
Assim como o Renato Terra, eu nunca levei um questionário pronto. Tinha, no máximo, algumas anotações muito genéricas sobre os assuntos que queria abordar. Como já tinha lido muitas entrevistas feitas àqueles autores e autoras e tinha devorado os seus livros, na minha cabeça estava bem fresco quais eram as grandes temáticas das suas obras, os assuntos que lhes interessavam (e aborreciam), as suas obsessões, a forma de trabalhar e a relação que tinham com os seus livros. Sempre que possível conversei com pessoas próximas para tentar descobrir algum detalhe, algum ponto interessante da personalidade dos meus entrevistados/as que poderia ser explorado. O fato de conhecer a maioria deles/as também ajudou, já existia uma mínima intimidade entre nós. O que eu lhes pedia, sempre, era que nossa conversa fosse realizada sem pressa. Precisava passar o máximo possível de tempo com eles e sugeria que podíamos nos encontrar mais de uma vez, o que em algumas ocasiões foi possível (e muito produtivo). Também lhes perguntava o que gostavam de fazer. Com alguns almocei ou jantei, caminhei por cidades, visitei livrarias, passeamos com seus cachorros. Em muitos momentos falávamos de coisas que aparentemente não faziam parte da entrevista, mas que no final acabaram por me servir para entender um pouco mais quem eram aquelas pessoas - no começo de cada entrevista traço um breve perfil delas. E havia também momentos de silêncio, como há na entrevista do Terra e do Calil ao Caetano, e que aprendi a respeitar e não dizer qualquer coisa só para cortá-lo. Muitas vezes, após essa quietude, os meus entrevistados continuavam uma história ou começavam algum assunto sobre o qual queriam falar.
Haveria muito mais para dizer sobre esse assunto, quem sabem no futuro continuo… Mas termino deixando um conselho que não me foi pedido: desenvolva o seu método para entrevistar, veja aquilo que funciona com você, mas não se esqueça de saber ouvir, mais importante do que a sua pergunta é a resposta a ela. E outra coisa, uma entrevista começa muito antes do gravador ou da câmera serem ligados. Quem fala disso é o jornalista argentino Ezequiel Martínez, que aprendeu essa regra de ouro quando foi entrevistar o Gabriel García Márquez. Ele diz isto, que uso como epígrafe do meu livro:
Gabo nos había pasado a buscar por nuestro hotel en Cartagena de Indias al mediodía y estuvimos con él hasta las seis o siete de la tarde. Almorzamos, recorrimos a pie el casco antiguo de la ciudad, visitamos algunos sitios que aparecen en sus novelas y el fotógrafo se tomó más de dos horas para retratarlo. Ya caía el sol cuando nos despedimos y le preguntamos a qué hora quedábamos para la entrevista al día siguiente. “¡Pero si la entrevista ya empezó!”, nos contestó.
Nota: Felizmente, o Sobre a ficção terá uma nova edição agora no Brasil. A Companhia das Letras, que editou o livro para que a TAG distribuísse, fará uma tiragem para ser vendida ao público em geral. Até agora, só quem era assinante do clube podia comprá-lo. Em breve, o livro estará disponível nas livrarias brasileiras.
No video-cassete
Não é de caso pensado, mas as ditaduras militares do Sul da América têm me acompanhado nas últimas semanas, seja com o livro da Leila Guerriero, com as fotos do João Pina, e agora com um filme do Fernando Trueba. Amante da música brasileira, esse diretor de cinema espanhol um dia escutou um solo de piano e ficou fascinado, foi olhar no encarte do disco e viu um nome que nunca tinha visto: Tenório Jr. Quando procurou mais sobre o pianista descobriu que era um brasileiro, talentosíssimo, que havia desaparecido em Buenos Aires, numa madrugada de março de 1976. Durante anos Trueba entrevistou músicos, conversou com pessoas próximas a Tenório, com jornalistas e historiadores, para tentar saber mais sobre a triste história desse homem que foi engolido pela máquina de desaparecer pessoas criadas pelos militares argentinos. Depois de feita a pesquisa, Trueba se aliou com o desenhista Javier Mariscal para fazer Dispararon al pianista, um documentário feito em animação. É um filme cheio de cores e de música, bonito e triste, que mostra - como disse a minha amiga que conseguiu os ingressos para irmos ao cinema - que podemos ignorar a política e um dia sermos atropelado por ela. Tenório não era comunista, na verdade nem sabia do que se passava na Argentina, saiu de madrugada do hotel onde estava para comprar algo para comer. Até hoje seu corpo não foi encontrado.
Na mesa de cabeceira
Quase no final de Tabacaria, aquele poema que é um monumental tratado sobre a existência humana, Fernando Pessoa (ou melhor, Álvaro de Campos, que é o heterônimo que assina os versos) fala num homem sem metafísica. Esteves é o nome dele. A existência daquela pessoa que apenas vive, sem pensar muito nos propósitos da vida, pacifica e alegra o autor do poema, que até então estivera na janela sofrendo com o fardo que é estar no mundo.
Esta semana, li um livro que me tocou profundamente. O que é meu é a conversa de um professor universitário, doutor em sociologia, com o pai, um caminhoneiro que nunca abriu um livro na vida mas que conhece muito bem o Brasil porque o percorreu durante meio século levando todo tipo de carga sem se perguntar muito o por quê das coisas. Quem faz essas perguntas é o seu filho, José Henrique Bortoluci, que vai entrelaçando os depoimentos do pai com a história do país que esse homem ajudou a construir. Seu Didi foi um dos tantas braços que serviram ao projeto ambicioso e violento de nação que os militares quiseram colocar em prática, mas nunca fez ideia disso. Aposentado, ele agora conta as suas lembranças enquanto enfrenta um câncer que quer tomar conta do seu corpo. Seu Didi é como Esteves, um homem sem metafísica. Cabe a Bortoluci filho, como faz Álvaro de Campos na Tabacaria, a (muitas vezes inútil) tarefa de teorizar e questionar sobre os propósitos da vida.
Publicado no Brasil no ano passado pela Fósforo, já está traduzido a vários idiomas, O que é meu chega agora em Portugal com a chancela da Companhia da Letras. Vale demais a leitura.
Frase da semana
“Fui votar, mas perdi”
Sizaltina Maria, 66 anos, natural de São Tomé e Príncipe, residente em Portugal há mais de duas décadas, a propósito das eleições realizadas no domingo em que foram eleitos 48 deputados de um partido de extrema-direita