Nos romances de Juan Gabriel Vásquez acontece com frequência da História cruzar o caminho das personagens. A ideia de que grandes acontecimentos impactam as nossas vidas privadas parece bastante óbvia, mas nos livros do colombiano o que ocorre é que os protagonistas normalmente são tocados particularmente por esses singulares momentos históricos. Mais do que testemunhas, eles terminam por ser partícipes (muitas vezes vítimas) da História.
Lembrei do autor de El ruído de las cosas al caer quando conheci o jornalista português Joaquim Furtado. Há 50 anos, numa madrugada em que estava de plantão na rádio onde trabalhava, ele e a história com maiúscula se encontraram. Furtado preparava um boletim de notícias (as que o regime permitia serem dadas) que leria dali a pouco quando o estúdio do Rádio Clube Português foi invadido por homens armados. Eram militares que pretendia derrubar a ditadura e haviam escolhido aquela rádio para ser o meio de difusão da operação, o ponto de contato com a população. Passava das 4 da manhã quando o grupo recebeu a ordem de que fosse lido o primeiro comunicado do Movimento das Forças Armadas (os rebeldes). Entre os militares, ninguém se atrevia a ler o documento, sentia-se nervosos e temiam passar essa imagem para o país. Perguntaram para o radialista se ele estava disposto a fazê-lo. E foi assim que Joaquim Furtado entrou para a História como o homem que emprestou a voz à revolução.
Entre o final de 2022 e o começo deste ano, mergulhei na história da revolução portuguesa, conversei com uma série de pessoas e escrevi um livro, que será publicado agora no México e na Espanha. Furtado foi uma das pessoas que entreviste. “Conhecendo os jornalistas como conheço, sei quando quando eu morrer a notícia que será dada vai ser: Morreu a voz da Revolução”, me disse sorridente.
Neste trechinho da entrevista, ele conta que tem na parede de casa o original do comunicado que leu, “autografado” por todos os militares que invadiram a rádio aquele dia. E também recita de memória as primeiras frases que da mensagem que passou ao país naquela madrugada tão esperada.
Abaixo o áudio original da leitura do primeiro comunicado do MFA, feita às 04h26 do dia 25 de abril de 1974.
Nota: Há uns meses publiquei no Instagram um breve áudio de outra entrevista que fiz para o livro, fica aqui o link.
No toca-discos
Vocês devem se lembrar do estrondo que foi a aparição, ali no final da década passada, da Matilde Campilho com os seus poemas solares e o seu sotaque charmoso. Era uma coisa nova, atraente, cheia de vida e sexy. Se quisesse, a escritora portuguesa poderia ter escrito a continuação do seu aclamado livro de estreia, o Jóquei, e surfado na fama. Passaria a vida em festivais literários, apareceria nos programas de televisão mais cools e seria estrela dos podcasts da moda apresentados por celebridades. Mas não foi esse o caminho que ela escolheu. Decidiu deixar o Rio e voltar a Lisboa. E decidiu se recolher. Hoje em dia é difícil ouvir ou ler uma entrevista sua, o seu nome já não circula tanto, ela já nem tem redes sociais. Só na rádio, uma vez por semana, é que escutamos a sua voz, num programa sobre música que apresenta na Antena 3.
O seu segundo livro, chamado Flecha, publicado em 2022, não teve nem de longe o impacto do primeiro. Isso porque não é a continuação dos poemas solares. Já não são versos, são textos curtos, pequenas histórias, com certa semelhança com o que fazia o Eduardo Galeano. A Matilde Campilho cresceu, amadureceu, já não é a mesma pessoa que cruzava a cidade só para ver alguém dançar, como diz numa poema seu que ficou famoso. Ou aquela que, se pudesse, “voltava à cidade, só para beijar a cidade na boca”.
Continua gostando de ler e ouvir a portuguesa, até porque eu também já não sou o mesmo que mandava os seus poemas para amigos empolgado de ter descoberto aquela novidade. Por isso, recomendo vivamente que ouçam esta entrevista dela para o jornal Expresso. Diz coisas tão acertadas sobre o tempo das coisas, a paciência, os ciclos da vida e a lógica perversa que domina as vidas virtuais e as “inteligências” artificiais.
Na mesa de cabeceira
Em 2015, a Academia Sueca reconheceu a qualidade da obra literária da jornalista bielorrusa Svetlana Aleksiévitch. Naquele ano, o Prêmio Nobel de Literatura foi entregue a alguém que cuja produção é eminentemente documental, não ficcional e baseada na recolha de testemunhos. Essa é a parte que mais me fascina e atrai dos livros de Svetlana, a destreza com que ela constrói os relatos a partir de muitas vozes de pessoas comuns, anônimas, que em princípio não têm uma história grandiosa para contar.
O primeiro livro dela que li foi A guerra não tem rosto de mulher e passei semanas com aquela maravilha nas mãos, abrindo o fechando o livro na tentativa de entender como foi construído. São centenas de mulheres contando as suas histórias privadas, muitas vezes íntimas, que quando conectas contam a história da participação da União Soviética na Segunda Guerra Mundial. Me lembro, por exemplo, de uma mulher que contava que tinha ido à guerra tão jovem, que quando voltou para casa a mãe a mediu e ela tinha crescida. Outra conta que menstruou pela primeira vez na frente de combate. E outra, para explicar que não tinha ideia do que era uma guerra, diz que levou o par de sapatos de salto alto. São com relatos assim que a jornalista consegue dar tanto sabor (e horror) nas histórias que conta.
Estou agora com o seu O fim do homem soviético, que funciona da mesma forma: muitas vozes contam fragmento de um grande acontecimento. Neste caso é a dissolução da União Soviética e o que isso significou na vida daqueles que assistiram à morte dessa utopia. Não sei se o trabalho dela me impressiona tanto por eu também ser jornalista, mas acho primoroso o que a Svetlana faz. No Brasil, a sua obra está publicada na Companhia das Letras.
No video-cassete
Já falei aqui sobre a plataforma Caixa Fórum+, que tem um acervo incrível de documentários sobre arte e cultura. Esta semana eles disponibilizaram uma série feita pelo jornalista Xavi Ayén e o fotógrafo Kim Manresa com entrevistas a prêmios Nobel de Literatura. A primeira que vi é com o Orhan Pamuk, autor de Museu da Inocência, livro que me deixou de joelhos. Em certo momento, o escritor turco diz esta frase maravilhosa: “Decidi ser escritor porque queria viver uma vida solitária imaginando coisas”. Sentado na sala da casa onde vive há mais de 50 anos, com uma vista para o Bósforo, o autor de Neve afirma: “Creio na literatura como uma arte universal. Ainda que vivas em Istambul, Xangai ou Buenos Aires, o coração humano é igual em toda parte. Sempre tenho em mente isso quando escrevo.”
Frase da semana
“Não seja idiota, não volte a pedir que eu mostre as pernas, você nunca diria isso a um homem”
Hannah Waddingham, atriz britânica, a um fotógrafo no tapete vermelho de uma premiação
Edição de luxo da news :)