Há em Portugal uma oliveira tão antigua quanto a Guerra de Troia, uma árvore de mais de 3 mil anos que ainda produz azeitonas. No interior do país é comum encontrar oliveiras centenárias, às vezes milenárias, que até hoje dão matéria prima para o azeite. Nos últimos anos, no entanto, surgiu na paisagem local um outro tipo de oliveira. São árvores de pequeno porte, com copas mais robustas (e com mais azeitonas por metro cúbico) que são plantadas em fileiras, umas bem próximas das outras para aproveitar mais o terreno e facilitar a colheita. É o resultado de uma nova técnica de produção super-intensiva que é benéfica para os empresários - que colhem mais azeitonas e mais de uma vez ao ano -, mas péssima para a natureza, com um consumo muito mais elevado de água, contaminação dos lençóis freáticos pelo uso de produtos químicos e deterioração do solo, que não descansa.
O tempo de “vida útil” dessas oliveiras de produção intensiva é de cerca de 20 anos. O stress devido a alta produtividade fará com que elas, em breve, sejam imprestáveis - enquanto as árvores da época de Helena e Páris seguirão dando frutos.
Tenho pensado bastante no tempo das coisas. Recentemente uma pessoa me recomendou um filme e em seguida fez o seguinte comentário: “Dá para ver em velocidade 1.5”. Devo ter feito uma cara de reprovação, porque a cinéfila tentou logo argumentar que há filmes que são muito lentos e que não perdemos nada se os virmos aceleradamente. Eu me perguntava, se o autor do filme quisesse que ele fosse mais rápido teria feito dessa forma, não?
Na internet é muito comum aparecerem vídeos em que as vozes estão mais rápidas do que normal (não consigo me acostumar com isso, me dá gastura). Ouvir mensagens de áudio, podcasts e até áudiolivros em velocidade acelerada também é uma prática comum atualmente. Por que eu veria um filme em 130 minutos se posso vê-lo em 80? Por que colher azeitonas uma vez ao ano se posso colher duas? Arrisco uma resposta: porque as coisas têm o seu tempo.
O ex-jogador de futebol Gerard Piqué, campeão do mundo pela Espanha, disse há uns meses que as novas gerações não aguentam assistir a jogos de futebol porque são 90 minutos em que muitos momentos “não acontece nada”. O ex-zagueiro promete revolucionar o futebol com a criação de uma liga com novas regras que fazem com que durante uma partida de futebol aconteçam coisas sempre (algumas bem bizarras, como o presidente do clube ir bater um pênalti).
Aparentemente o supercampeão pela seleção espanhola e pela Barcelona não entende nada de futebol, não conseguiu até hoje compreender que para que aconteçam coisas maravilhosas num jogo é necessário que em alguns momentos não se passe nada. Um atleta caído no chão, um recuo para o goleiro, um atacante que ganha tempo com a bola nos pés perto da bandeirinha de escanteio, uma série de passes errados, um chute torto, tudo isso também faz parte da beleza do esporte. Sobre isso fala Sérgio Rodrigues no seu delicioso O Drible, um dos melhores romances que têm o futebol como pano de fundo.
Há uma passagem nesse livro em que Murilo Filho, um cronista esportivo octagenário à beira da morte, faz o filho assistir a 10 minutos do duelo França x Brasil pela semifinal da Copa do Mundo de 1958 em que “não acontece nada”. O velho passa a comentar as falhas pavorosas de ambos lados, com destaque para um Pelé irreconhecível e um Garrincha desaparecido em campo. Neto, o filho, pergunta ao pai (com quem tem uma difícil relação), porque ele escolheu o pior pedaço para lhe mostrar. “Não é o pior pedaço. É a vida. O jogo normal. Futebol é assim: o caos. O Brasil tinha um time superior, mas a França poderia ter vencido a partida. Tranquilamente.” Aquele momento da partida, argumenta o ex-cronista, é fundamental porque a moeda estava no ar, a sorte ainda não tinha escolhido um lado. “Sabe como terminou o jogo? Cinco para o Brasil, dois para a França. Sabe quantos gols o Pelé marcou, o mesmo Pelé que acabamos de ver errando tudo o que tentou fazer? Três. Dois deles obras-primas, depois de jogadas diabólicas do Garrincha”, diz Murilo ao filho. “O futebol é cheio de planícies imensas, horas mortas como as que acabamos de ver. Um bololô de ruído, intenções que não se concretizam, acidentes, lances de sorte e azar. Nas horas mortas pode acontecer tudo”, completa.
Neste ensaio o sociólogo francês Laurent Vidal vai recuperar um conceito de Milton Santos sobre os "homens lentos", que são aqueles que resistem à modernidade/capitalismo. Milton Santos questionava sobre a urgência da velocidade e a pressa como virtudes; Laurent Vidal vai nos contar como nas horas mortas, em portos como New Orleans e Rio de Janeiro, os trabalhadores mal pagos e marginalizados criaram, há mais de um século, manifestações culturais que até hoje seguem nos encantando.
Sou um grande entusiasta das horas mortas e da lentidão. Dizendo em palavras mais bonitas, emprestadas de Manoel de Barros, prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis.
Engraçado que não acontecer nada no futebol pode ser errar, enrolar, recuar, mas também pode ser ficar rodando a bola de uma ponta à outra, passando em frente à meia-lua da grande área, esperando pacientemente quebrar a marcação de 11 jogadores na defesa. Muda, muda, mas não muda.
Lindo texto Ricardo!
Tem um poema, da Viviane Mosé, sobre o Tempo que adoro. Lembrei dele lendo o seu texto:
Quem tem olhos pra ver o tempo
Soprando sulcos na pele
Soprando sulcos na pele
Soprando sulcos?
O tempo andou riscando meu rosto
Com uma navalha fina
Sem raiva nem rancor
O tempo riscou meu rosto com calma
Eu parei de lutar contra o tempo
Ando exercendo instante
(acho que ganhei presença)
Acho que a vida anda passando a mão em mim
A vida anda passando a mão em mim
Acho que a vida anda passando
A vida anda passando
Acho que a vida anda
A vida anda em mim
Acho que há vida em mim
A vida em mim anda passando
Acho que a vida anda passando a mão em mim
E por falar em sexo
Quem anda me comendo é o tempo
Na verdade faz tempo
Mas eu escondia
Porque ele me pegava à força
E por trás.
Um dia resolvi encará-lo de frente
E disse: Tempo,
Se você tem que me comer
Que seja com o meu consentimento
E me olhando nos olhos
Acho que ganhei o tempo
De lá pra cá
Ele tem sido bom comigo
Dizem que ando até remoçando
Viviane Mosé