No final da vida, Jorge Luis Borges fez um passeio de balão na companhia de María Kodama. O casal sobrevoou, ao amanhecer, vinhedos e campos da Califórnia. Cego, o escritor argentino não viu a paisagem, mas sentiu-a. Contou como o vento acariciava a nuca, o rosto e as bochechas dos tripulantes e levava lentamente o enorme cesto como se estivessem descendo um rio de águas calmas. “Todos sentimos, creio, uma felicidade quase física”, disse, para em seguida completar: “Quase, porque não existe felicidade ou dor que sejam apenas físicas, sempre intervém o passado, as circunstâncias, o espanto e outros produtos da consciência.”
Para mim Borges é um bombista disfarçado. Parece um velhinho inofensivo, andando com seu passo curto, lento, bengala na mão, mas de repente ele tira de um dos bolsos do casaco uma granada (ou uma dinamite) em forma de sentenças como esta: “Não existe felicidade ou dor que sejam apenas físicas, sempre intervêm o passado”.
Parece que foi o Freud quem disse que tudo acontece na infância, depois são só repetições. E Louise Glück escreveu num poema este verso definitivo: “Olhamos o mundo uma vez na vida, na infância. O resto é memória”.
Mas será que estamos mesmo tão condicionados assim aos primeiros anos da vida, justamente uma etapa em que temos pouca ou nenhuma autonomia sobre os acontecimentos? Cada vez que o meu subconsciente me leva, em sonhos, à casa da minha infância, ao clube onde jogava futebol, a estar com pessoas que habitam um tempo/espaço que já não existe (ou só existe dentro de mim, guardado em alguma gaveta do antigo, pesado e empoeirado móvel chamado memória), eu concordo com Borges. E com Glück. E com Freud.
Somos, feliz ou infelizmente, reféns da infância que tivemos. Em adulto já não fazemos nada virginalmente, a felicidade, a dor, a ansiedade, a compaixão, o ciúmes, o medo e tantos outros sentimentos já foram provados. E agora, quando vivenciamos algo, essas memórias são sempre acionadas. “Se fosse possível rasgar e jogar fora o passado, como o rascunho de uma carta ou de um livro. Mas fica sempre aí, manchando a cópia passada a limpo, e eu acho que isso é o verdadeiro futuro”, escreve Cortázar em Cartas de Mamá. Mas não é possível, tudo é memória, o passado sempre intervém.
Na mesa de cabeceira
Esta semana quem me fez companhia foi a escritora Cristina Peri Rossi (Montevidéu, 1941). O exílio e o amor são os grandes temas dessa poeta, contista e romancista que deixou o Uruguai em 1972 rumo a Barcelona, por causa da ditadura militar em seu país, e depois teve que partir para a França, em 1974, por causa do franquismo. Retornou a Espanha, onde vive até hoje. Em 2021 recebeu o Prêmio Cervantes, o maior reconhecimento em língua espanhola.
Não gosto muito de ouvir pessoas lendo poemas. Primeiro porque tenho dificuldade em prestar atenção no que é dito, mas também porque acho que são poucas as pessoas que sabem dizer bem (sem afetação, mas com sentimento) os versos escritos. Mas costumo gostar quando é o próprio autor/a a fazê-lo. E encontrei estes dois vídeos da Peri Rossi lendo dois dos seus poemas que mais gosto. Achei tão lindo que decidi traduzi-los.
HISTÓRIA DE UM AMOR
Para que eu pudesse te amar
os espanhóis tiveram que conquistar a América
e meus avós
fugirem de Gênova num barco de carga.
Para que eu pudesse te amar
Marx teve que escrever O Capital
e Neruda, a Ode a Leningrado.
Para que eu pudesse te amar
Na Espanha houve uma guerra civil
e Lorca morreu assassinado
depois de ter viajado a Nova Iorque.
Para que eu pudesse te amar
Catulo se apaixonou por Lésbia
e Romeu, por Julieta
Ingrid Bergman filmou Stromboli
e Pasolini, os 120 Dias de Sodoma.
Para que eu pudesse te amar
Lluís Llach precisou cantar Els Segadors
e Milva, os poemas de Bertolt Brecht.
Para que eu pudesse te amar
alguém teve que plantar uma cerejeira
na cerca da tua casa
e Garibaldi lutar em Montevidéu.
Para que eu pudesse te amar
as crisálidas se transformaram em borboletas
e os generais tomaram o poder.
Para que eu pudesse te amar
tive que fugir em barco da cidade onde nasci
e você, fazer resistência a Franco.
Para que nós nos amassemos, a final
aconteceram todas as coisas do mundo.
e desde que não nos amamos
só existe uma grande desordem.
A PAIXÃO
Saímos do amor
como de uma catástrofe aérea
Tínhamos perdido a roupa
e o controle
a mim me faltava um dente
e a você a noção do tempo.
Foi um ano longo como um século
ou um século curto como um dia?
Pelos móveis
pela casa
as sobras:
copos fotos livros sem páginas
Éramos os sobreviventes
de uma demolição
de um vulcão
de uma enchente
E nos despedimos com a leve sensação
de ter sobrevivido
ainda que não soubéssemos para quê.
Imagem da semana
O furacão Milton em direção à Flórida fotografado por um astronauta da Estação Espacial Internacional. A natureza pode ser linda e assustadora, como a vida. (Matthew Dominick/NASA/Reuters)
Frase da semana
“Espanha é um país de emigrantes, de pessoas que passaram décadas no estrangeiro em busca de uma vida melhor (…) Temos que recordar as odisseias que viveram nossas avós e avôs na América Latina, no Caribe e na Europa e entender que nosso dever é ser essa sociedade acolhedora, tolerante, solidária, que eles gostariam de encontrar quando emigraram”
Pedro Sánchez, presidente da Espanha, ao anunciar medidas para acelerar o processo de regularização de imigrantes no país
Ricardo Viel, nunca vi uma News tão boa! Obrigada pela companhia semanal.