Em agosto de 1987, o médico e professor universitário Héctor Abad Gómez foi assassinado por paramilitares em Medellín, na Colômbia. O seu filho, o escritor Héctor Abad Faciolince, herdou a sua biblioteca. Ele conta que com frequência abre um livro e encontra anotações, sublinhados e outras marcas deixadas pelo pai. Quando isso acontece, é como se voltassem a conversar, diz o autor de El olvido que seremos.
A literatura é uma grande e infinita conversa. Quando fazemos uma anotação num livro estamos alimentando esses diálogos, não só com quem escreveu aquelas linhas mas também com quem já as leu e com quem virá a lê-las depois de nós. Ao sublinharmos, anotarmos, desenharmos um coraçãozinho ou um ponto de interrogação no cantinho de uma página, estamos deixando pistas da nossa passagem por aquele lugar. E enviando um sinal cifrado para futuro.
Estou agora relendo um livro que li há mais de 20 anos. Não me lembrava quase nada da história que ele contava, mas sim da sensação que provocou. Lembrava que ele tinha mexido comigo e me enchido de perguntas. Acho que a literatura tem esse poder: de repente uma frase, uma palavra, uma imagem abrem um portal dentro de nós. E se temos o costume de fazer marcas nos livros, a sinalização para essa passagem pode servir de ajuda para quem vier depois. O mais fascinante é que pode ser que sejamos nós mesmos quem um dia encontraremos essas pegadas deixadas pelo leitor do passado que fomos.
Marginália é a denominação técnica para as notas, comentários e outras intervenções feitas num texto que não é nosso. Há quem considere uma blasfémia com os livros - tão grave como alguém que durante uma canção ou um filme tece comentários sobre o que está vendo e ouvindo. Eu não penso assim, considero um gesto de generosidade. Gosto de me sentir acompanhado numa leitura, de saber que alguém passou por ali antes de mim.
Nota: Vasculhar a biblioteca de José Saramago em busca de marginálias é frustração garantida. O português, talvez pelo fato de ter feito a sua iniciação de leitor em bibliotecas públicas, não deixava nenhum rastro da sua passagem pelos livros que lia. Fernando Pessoa, em compensação, anotava de tudo nos livros que tinha. Muitas vezes usava as páginas em branco para apontar esboços de poemas e ideias de projetos.
Na mesa de cabeceira
Passei os últimos dias na companhia de Tomas, Tereza, Sabrina e Franz, personagens de A insustentável leveza do ser, do Milan Kundera. A primeira vez que li esse romance foi numa edição emprestada por um amigo. Agora, com lápis na mão (acho um pouco violento fazer marginália com caneta), vou enchendo de sublinhados e comentários o meu livro.
Achava estranho quando ouvia alguém dizer que estava numa fase mais de revisitar obras do que de ler novas, mas nos últimos anos tenho sido eu a reler livros que li no passado. Além da leitura ser outra, porque já não sou mais o jovem que abriu aqueles livros com vinte e poucos anos, a releitura provoca um encontro com aquele que fui no passado. De muitos livros, mais do que a história/enredo, o que guardo é a lembrança de quem eu era, onde estava, por qual momento da vida passava quando os li. Reler é remexer no baú das memórias, é conversar com quem um dia fomos.
No toca-discos
Gustavo Mozzi é um violonista e compositor argentino nascido em 1961 que tem os sons do Rio da Prata (tangos, milongas, murgas, gêneros criollos) como sua matéria prima. Tem me acompanhado este disco Estuario, com a Orquestra Matiné. Coisa fina!
Frase da semana
“Com o tempo, achamos que será mais difícil treinar modelos [de Inteligência Artificial], mesmo que provavelmente tenhamos mais dados (…) Vai ser mais difícil encontrar conjuntos de dados que não estejam enviesados.”
Ilia Shumailov, coautor do estudo publicado na Nature que aponta que modelos de IA treinados por conteúdos gerados previamente por IA tendem a produzir conteúdos sem sentido
hilda hilst deixou milhares de marginálias em sua biblioteca: anotações, desenhos etc... um acervo a parte! <3
Eu faço marginalias em meus livros, mesmo que meus pais abominassem a minha infância cheia de desenhos ligando palavras improváveis nos seus livros de poesia... Como fazer marginalias (adorei a palavra, quero usar mil vezes) no substrack?