“Fui ao cinema, vi um filme que me fez chorar até a hora de dormir”, me escreveu esta semana uma pessoa querida. E me fez pensar em quando foi a última vez que chorei de verdade, com nariz, joelhos, umbigo e boca, como ensina o Oliverio Girondo. A verdade é que já nem me lembro…
Há uns dias compartilhei numa rede social o trecho de uma entrevista em que Manuel Vicent conta que, pelas tardes, costuma colocar música (preferencialmente jazz) para chorar. Não se trata de chorar para ficar cheio de muco, mas apenas para que as lágrimas caiam, esclarece o espanhol. “Choro porque vejo que o mundo, meu mundo, está se acabando”, diz o escritor de 87 anos. Trata-se de um choro de melancolia, que alivia e conforta, ele acrescenta.
Uma amiga, ao ver esse vídeo, me escreveu dizendo que “chora que dá gosto, o tempo todo”. Por coisas tristes, mas sobretudo por coisas “boas, bonitas, gestos de ternura”.
Eu também já fui de chorar. Houve uma temporada em que chorei bastante, mas isso foi há muito tempo. Houve um dia, em especial, que chorei um Tejo inteiro - na verdade, um Tormes, porque isso foi na época em que eu vivia em Salamanca. Sentei num banco e chorei, chorei, chorei. Muito. E depois é como se tivesse secado a fonte.
Nessa altura eu tinha um professor que chorava em sala de aula. Era um homem elegante, respeitadíssimo no ambiente acadêmico, catedrático em ciências políticas. Durante as aulas ele tirava do bolso um lenço e secava as lágrimas, que caiam sempre do mesmo olho (o direito, salvo erro). Era uma torneira mal fechada por onde gotejavam lágrimas. Comecei a me sentar na primeira fileira nas aulas para assistir àquele acontecimento. Ele enxugava as lágrimas num gesto mecânico, não havia qualquer vestígio de emoção no processo. Ninguém me tira da cabeça de era a maneira que o seu corpo tinha encontrado para expelir as lágrimas que ele não deixava sair.
Dizia-se que ele às vezes convidava os alunos para um almoço em sua casa, na beira do rio. Pensei em levar uma garrafa de uísque para sacar da mochila quando o pessoal estivesse indo embora. Ele diria para eu ficar, para tomarmos uma dose. Então iriamos para a varanda (que eu imaginava existir), nos sentaríamos de frente para o rio nas cadeiras de vime (que eu também imaginava existir) e ficaríamos bebendo uísque e falando da vida. Até que ele começaria a chorar de verdade, com os dois olhos.
No vídeo-cassete
Não sei se vocês se lembram de como começa o filme Fale com ela, do Pedro Almodóvar. É assim: Pina Bausch e outra bailarina estão de olhos fechados e percorrem o palco de um teatro. Embatem contra as paredes, caem no chão, numa coreografia regida por uma música triste. A câmera então foca em em dois homens da plateia que assistem emocionados ao espetáculo. Um deles começa a soluçar. O outro nota que o desconhecido ao seu lado chora, faz um gesto de dizer algo, mas recua. Meses depois, as vidas desses dois homens, Marco e Benigno, voltarão a se cruzar numa clínica de reabilitação, cada um cuida de uma mulher que ama e que está em coma.
Escreve Pedro Almodóvar no roteiro do filme: “Penso que foi Cocteau quem disse que a beleza pode ser dolorosa. Suponho que ele se referia à beleza das pessoas, mas eu creio que os momentos de súbita, intensa e inesperada beleza também podem provocar lágrimas de dor ainda que a sua origem seja de intenso prazer.”
Nessa outra linda cena do filme, Marco chora ao escutar Caetano Veloso interpretar o clássico mexicano Cucurrucucú Paloma.
Na mesa de cabeceira
Traduzi o poema Llorar a lágrima viva, do argentino Oliverio Girondo (1891 - 1967)
Chorar a lágrima viva
Chorar a jatos. Chorar a digestão. Chorar o sonho. Chorar diante das portas e dos portos. Chorar de amabilidade e de amarelo.
Abrir as torneiras, as comportas do pranto. Empapar a alma, a camiseta. Inundar os caminhos e as calçadas, e salvar-se, a nado, do próprio pranto.
Assistir ao curso de antropologia, chorando. Festejar os aniversários familiares, chorando.
Atravessar o África, chorando.
Chorar como um urutau, como um crocodilo. Se é verdade que os urutaus e os crocodilos estão sempre chorando.
Chorar tudo, mas chorar bem. Chorar com o nariz, com os joelhos. Chorar com o umbigo, pela boca.
Chorar de amor, de tédio, de alegria. Chorar de fraque, de flato, de fraqueza. Chorar improvisando, de memória. Chorar a insônia toda e o dia todo!
E me lembrei das instruções para chorar, do Julio Cortázar, publicadas no maravilhoso Historias de Cronópios e de Famas. Aqui abaixo na tradução de Isabel Pettermann, edição da Cavalo de Ferro (Portugal).
Instruções para chorar
Deixando de lado os motivos, concentremo-nos na forma correcta de chorar, entendendo-a como um pranto que não se transforme em escândalo nem insulte o sorriso com a sua rude semelhança.
O choro médio ou comum consiste numa contracção geral do rosto e num som espasmódico acompanhado de lágrimas e ranho, este último só no fim, pois o choro termina no momento em que a pessoa se assoa energicamente. Para chorar, dirija a imaginação para si mesmo, e se isto não lhe for possível por ter contraído o hábito de acreditar no mundo exterior, pense num pato coberto de formigas ou nos golfos do Estreito de Magalhães nos quais não entra ninguém, nunca.
Quando o choro chegar, tapará decorosamente o rosto usando ambas as mãos com as palmas viradas para dentro. As crianças choram com a manga do casaco encostada à cara, e de preferência num canto do quarto. Duração média do choro, três minutos.
Frase da semana
“Ao entrar num mercado no norte de Gaza, percebe-se que a guerra toma muitas formas. Dois ovos, seis euros. Leite em pó para bebé e farinha láctea, 24 euros. Três batatas, 36 euros — há um ano, custavam cerca de 50 cêntimos.”
De uma reportagem do diário Público, de Portugal
Quando cheguei na parte do teu professor, lembrei desse texto do Cortazar. Sempre que me pego com sentimentos de choro, sorrio com os três minutos soando inconscientemente ao fundo, metido entre pensamentos. Que linda a surpresa ver a referência! E teus textos, sempre em boa hora!
O melhor dos mundos teria sido chorar ao final do texto. Não chorei, mas me emocionei igual.