Talvez exista em algum idioma (eu apostaria no alemão) uma palavra que concentre a seguinte ideia: a felicidade que se sente ao ver transformado em palavras aquilo que até então não éramos capazes de elaborar. Explico melhor, esta semana estava lendo o livro em que a editora Carme López Mercader fala sobre o vazio que é sua vida agora sem o companheiro Javier Marías, que faleceu em setembro de 2022.
O escritor, conta a ex-companheira, era muito ligado aos fantasmas e ao sobrenatural, enquanto ela era a cética da relação. Acreditar em fantasmas, explica Carme, era um consolo que ele encontrara para lidar com as perdas que tivera na vida. “Sem acreditar em nenhum Deus, ele acredita - em compensação - de maneira brincalhona, talvez sem base de sustentação, mas ainda assim de forma contínua, na reconfortante existência dos fantasmas, e ele mesmo se considerava, às vezes, a meio caminho de tornar-se um deles. Alguém que ia perdendo materialidade, que estava só tangencialmente no cotidiano”.
O curioso é que Carme diz que Marías tinha ojeriza a médiums, paranormais ou qualquer um que dissesse conectar com os mortos. No entanto, ele tinha um afeto enorme com os que já não estão. E agora ela, Carme, contrariando toda a sua racionalidade, sente que o fantasma brincalhão, carinhoso e sagaz do companheiro, a acompanha diariamente.
Os fantasmas de Marías, pelas palavras de Carme, resolveram para mim a questão de ser ateu, não acreditar em outras vidas, mas saber que os fantasmas existem, e buscar ter com eles uma sadia e confidente relação.
Imagem da semana
Afinal, 50 anos depois, ainda havia imagens inéditas da revolução portuguesa. José Carlos Nascimento era fotógrafo publicitário e na manhã de 25 de Abril de 1974 saiu à rua, pela zona onde trabalhava, com a câmera na mão e registrou o momento histórico. Fotografou, sobretudo, as pessoas, captou a tensão que antecedeu a queda da ditadura e a alegria que se seguiu a ela. E depois, inexplicavelmente, guardou, por meio século, aquele tesouro numa gaveta.
Em abril deste ano, em meio às comemorações dos 50 anos da Revolução dos Cravos, após a insistência de um amigo, o fotógrafo mostrou as suas imagens numa singela exposição. Ao não ser incluída no programa oficial das celebrações, a mostra passou completamente despercebida.
“Tenho um defeito, é que não sou ambicioso, não quero ser rico ou célebre. Sou um gajo um bocado passivo”, disse o fotógrafo ao jornal Público. “Sou contemplativo, olho para as coisas… O meu pai dizia-me que nos passeios que dava com ele em criança eu passava grande parte do tempo a olhar para as nuvens.”
Agora, as fotos de Nascimento voltam a ser mostradas numa pequena (e pouco atraente) exposição coletiva patente no Arquivo Histórico Militar, em Lisboa. Esse tesouro mereciam melhor lugar, cuidado e divulgação.
Entre as várias dezenas de imagens feitas pelo fotógrafos, há duas que se destacam. Uma delas é a de um soldado que olha para a câmera com um ar enigmático. O autor diz ser aquela imagem a sua Mona Lisa. “Não é um olhar de resignação, também não é de pânico, de medo ou de ódio. Há serenidade e expectativa, uma certa indiferença até. É um pouco inexpressivo quase. Não sei... não consigo descrever bem este olhar, sinceramente”, diz ao jornal. Outro detalhe importante na foto, o relógio do soldado marca a hora: 11h04. As imagens daquele dia em que tantas coisas aconteceram e que demorou 48 anos a chegar, muitas vezes parecem difusas num tempo difícil de medir. Neste caso não, o fotógrafo capturou o instante, faltavam 41 minutos para que o Movimento das Forças Armadas anunciasse via rádio que a situação estava dominada e que em breve chegaria a “hora da libertação”.
A outra foto é a de uma jovem que desce uma rua com um sorriso no rosto. Radiante, ela parece levitar. Nascimento conta que a retratada se chama Inês, era sua colega de trabalho na agência de publicidade, e vinha ao escritório dar a notícia de que a revolução estava na rua. Foi a primeira foto que autor fez naquele dia inesquecível.
Na mesa de cabeceira
Carme López Mercader foi companheira de Javier Marías por mais de 30 anos. Após a morte do escritor, em setembro de 2022, ela tentou dar seguimento à pequena editora que ambos haviam criado, a Reino de Redonda, que publicava dois, três livros ao ano, e tinha como objetivo recuperar títulos esquecidos e editar autores/as menos conhecidos. Agora, a editora catalã escreveu um livro intitulado Duelo sin brújula (“O luto sem bússula”), sobre a vida sem o companheiro, com o qual coloca fim ao projeto editorial que ambos construíram. “Agora que um dos dois que criaram este projeto já não está, não resta ao outro nada mais do que se despedir”, escreve ela no prefácio.
O livro é um relato cru, sem grandes ambições literárias (ou melhor, poéticas), sobre o vazio que a desaparição de uma pessoa amada deixa. É, antes de tudo, uma bonita despedida e também uma declaração de amor a um fantasma.
A frase da semana
“[Com a nossa chegada à presidência] chegam as indígenas, as trabalhadoras do lar, as bisavós que não aprenderam a ler e a escrever porque a escola não era para meninas, as nossas tias que encontraram na solidão a fortaleza, chegam as heroínas anônimas que de casa, das ruas ou lugares de trabalho lutaram para ver este momento”
Claudia Sheinbaum, primeira mulher eleita presidenta do México, em seu discurso de posse
Adoro adoro!
Obrigada Ricardo, você salva minha semana!
E quanto ao México, que bom, estamos chegando lá! Rsrs