Eu era muito pequeno e pode ser que algo dessa história seja fantasia da minha cabeça, mas, em termos gerais, o que aconteceu foi que a minha mãe bateu num carro da polícia. Virou piada familiar, só que a culpa não foi dela. A culpa foi do policial que tentou convencê-la de que ela conseguiria colocar o Fiat 147 amarelo naquela vaga, naquele momento, daquela forma. E foi dando instruções: “Vem, vem”, “Agora joga”, “Mais um pouco”. E ela foi. Jogou. E bateu.
Situação desagradável que poderia facilmente ter sido evitada, bastava o policial não ter sido proativo. Se ele não tivesse se metido, a minha mãe teria dado uma volta no quarteirão e estacionado um pouco mais longe do dentista. Simples assim.
Eu sei que é uma conversa que vai um pouco contra a corrente, na direção contrária do discurso dos coachs e essas coisas do mundo moderno, mas a proatividade está supervalorizada. Digo mais, muitas vezes a proatividade é um problema. Especialmente se você não sabe exatamente o que tem que fazer, se você não domina o assunto, “arregaçar as mangas” e “botar a mão na massa” pode piorar as coisas.
Uma vez eu estava de férias no México e o meu cartão de crédito começou perigosamente a rachar. No início era só um pequeno rasgo num canto, mas no decorrer da viagem a fenda foi aumentando. Eu não tinha dinheiro vivo, só tinha aquela opção de pagamento, o que fazia com que cada vez que ia usar o cartão eu tomasse muito cuidado. Um dia fui jantar num restaurante com um amigo e quando veio a conta eu disse que pagava. Passei delicadamente uma, duas, três vezes o cartão na máquina (naquela época não tinha isso de chip e aproximação), e nada. Então o garçom falou “Deja conmigo”. Com uma segurança invejável ele puxou um pedacinho de papel da máquina, dobrou em quatro, revestiu a parte de baixo da minha tarjeta - parecia um mágico executando um truque - e vrum, passou bem rápido o cartão, que no mesmo momento se partiu em dois. Então ele, com uma cara cara de bunda, me devolveu os destroços. Quando o artista foi embora, o meu amigo soltou a seguinte frase: “No hay nada peor que un pendejo con iniciativa”.
É isso, um pendejo, um tonto, um idiota proativo é um perigo em potencial. Portanto, pensem duas vezes antes de seguir conselhos do tipo “vai lá e faz”. Não, se você não souber fazer, não vá, não tente fazer. Chame alguém que saiba.
Esses dias ouvi uma expressão que fazia tempo não escutava: “Fulano é um encostado”. Tem uma conotação negativa, uma pessoa encostada é alguém que não faz nada, que não se mexe, um acomodado. Pois bem, um encostado nunca vai levar alguém a bater o carro, nunca vai quebrar no meio um cartão de crédito. Um encostado é inofensivo e o mundo está precisando de gente assim. Já são muitos os proativos (e parece que não tem dado muito certo, verdade?), é preciso valorizar aqueles que sabiamente preferem não fazer nada. Um viva aos encostados.
Na mesa de cabeceira
O livro mais conhecido de Antonio Tabucchi é Afirma Pereira, um romance maravilhoso ambientado numa Lisboa sufocada pelo salazarismo e que tem um final épico - a adaptação para o cinema com Mastroianni no papel principal ajudou a tornar o livro mais conhecido.
Tabucchi era italiano, mas viveu em Portugal muitos anos e era apaixonado pelo país, em especial por Fernando Pessoa e pela comida e bebida locais. Há um outro livro dele, menos falado, de que gostou muito, é Requiem - uma alucinação. O argumento é assim, enquanto faz hora para ir encontrar com o fantasma de Pessoa, o narrador-personagem percorre Lisboa num calor infernal passando por lugares conhecidos e se encontrando com pessoas carismáticas e meio excêntricas (além de comer e beber bem, um clássico nos livros do italiano). Uma das pessoas com quem ele conversa é o Pintor Copiador, um sujeito que vai ao Museu de Arte Antiga de Lisboa para copiar detalhes de Tentações de Santo Antão, do Bosch.
Esse pintor já anda nisso há uma década, começou a fazer para se distrair, mas acabou encontrando um milionário gringo que queria ter em casa todos os detalhes da obra do Bosch. E assim o artista sem inspiração (começou a copiar porque não tinha ideia do que pintar) passa a vida preenchendo grandes telas - de 2 metros de largura - com pormenores da tela que está no museu.
A passagem desse personagem pelo livro é rápida, são poucas páginas, mas é daquelas pessoas que não conseguimos esquecer. Acho fascinante essas figuras, reais o fictícias, que aparecem fugazmente e somem. Como numa peça de teatro, ela entra, diz ou faz algo, e sai de cena, sem que nós saibamos o que aconteceu antes e o que acontecerá depois na sua vida.
Convivemos durante semanas, meses e até anos com pessoas que no final das contas não significarão nada para a nossa existência. Colegas de trabalho, da escola e da faculdade, pessoas com quem fizemos algum curso, uma viagem em grupo, gente com quem nos encontramos com frequência em festas e reuniões porque são próximos de amigos ou da nossa família; enfim, é enorme o grupo de indivíduos que passam pelas nossas vidas - de alguns sabemos o nome e um mínimo da biografia- sem deixar nenhuma marca. Por outro lado, existem aquelas que passam veloz, mas profundamente, pelas nossas vidas e alteram a paisagem. Ainda que tenha sido só por uma frase que disseram ou um gesto que tiveram, algo em nós se alterou depois desse encontro fugaz.
No porta-retrato
Jorge Bacelar é um fotógrafo que acorda cedo e vai para o campo. É veterinário e trabalha no Norte de Portugal com atenção a animais de pequenos proprietários. A paixão pela fotografia veio já com certa idade e Bacelar encontrou nesse gente que trabalha a terra e nos seus bichos o motivo das suas fotos. O que começou como um passatempo acabou se tornando algo mais sério, hoje os seus retratos ganham destaque em galerias de arte e recebem prêmios.
Descobri o trabalho de Jorge Bacelar quando vi uma exposição sua chamada Ruralidades, com imagens de grande dimensão. Fiquei encantado. Depois o conheci pessoalmente e soube um pouco da sua história de vida e método de trabalho. Me contou que só usa luz natural e que os seus modelos são pessoas que conhece, com quem tem trato e proximidade, e que entende que fotografá-los é uma forma de homenagem. O resultado é essa maravilha que vocês veem aí embaixo: luzes, sombras e muita expressão.
Frase da semana
“Cidades inteiras terão que mudar de lugar”
Marcelo Dutra da Silva, professor de Ecologia da Universidade Federal do Rio Grande, sobre a tragédia ambiental que atingiu o Sul do Brasil