Ulisses demorou vinte anos para voltar a Ítaca e, embora Homero dedique versos e mais versos para narrar essa autêntica odisseia, não sabemos se foi feliz depois de finalmente conseguir regressar à casa. E se o herói se sentiu um estrangeiro na própria terra, na própria casa, na própria cama?
Diz-se que partir es morir un poco. E José Emilio Pacheco termina um poema dizendo que “El que se va no vuelve aunque regrese”. Ou seja, estamos sempre indo. Isto aqui, a nossa vida, é um filme que não pode ser rebobinado. Mesmo quando voltamos - para um lugar, para uma pessoa, para uma sensação - é sempre para a frente.
Há mais de uma década sou estrangeiro, condição que faz com que frequentemente eu seja perguntado (às vezes por mim mesmo) se penso em voltar a viver no Brasil. Pensar, às vezes, penso, mas a verdade é que sou cada vez mais alienígena na minha terra natal (sem deixar de o ser naquela para onde parti). Uma pessoa vai embora do seu país e parece que nunca termina de chegar n’outro. É uma espécie de jetlag permanente, o corpo chegou ao destino, mas a alma ficou pelo caminho. E nunca chega, mas também não consegue inteiramente voltar se quiser. Por que, então, com Ulisses seria diferente?
Enfim, podia eu ficar aqui falando horas e horas sobre esse assunto, mas para a minha - a nossa - sorte na semana passada a escritora argentina Leila Guerriero publicou no El País um texto tão preciso, tão acertado, sobre isso, que o melhor que possa fazer é tentar traduzi-lo.
“Formas de voltar”, Leila Guerriero
É difícil voltar. Voltar ao lugar antes deixado. Voltar de uma viagem. Voltar a uma casa. Voltar a um corpo alheio. Mas voltamos. Sem indiferença ainda que nos sintamos indiferentes. Enterrando assim a fantasia deliróide de que seria possível não regressar. De que seria possível deixar tudo para trás, partir sem pensar, entregar-se à passagem dos dias e dos meses até o tempo, bondoso, engolir tudo: a dor, as lembranças. Até tudo ficar coberto pelo esquecimento.
Volta-se ao trabalho, volta-se à mesma cadeira e aos mesmos espelhos. Volta-se ao mesmo corpo de alguém de quem já não se tem saudade. Ainda que sem entusiasmo, volta-se. E é difícil voltar, porque na ausência de quem se foi o filme seguiu. Nada se deteve, excepto aquele que executou a dolorosa tarefa de subir no carrossel em movimento e correu o risco de já não reconhecer o território que, antes, não só conhecia como amava. “Oh, esses não são os mesmos brinquedos de quando parti”, diz-se. “Oh, esta não é a mesma casa de quando parti.” E sim, são. Os mesmos brinquedos, a mesma casa. Só que por dentro já não corre o sangue que se deixou ao partir. Tudo parece um pouco seco, parece ter perdido a graça que, inventada ou não, tinha.
Mas mesmo assim, voltamos. Por inércia, por hábito, por covardia, por lealdade. Porque é prudente, é decoroso voltar. Adeus, então, às ilhas, ao pedaço de paraíso que pisamos, aos caminhos de terra e à falta de preocupação. Adeus aos mares, e aos peixes, aos barcos e às ostras, aos braços que nos protegeram das ondas, ao sexo pulsante, à busca do outro. Adeus ao risco e aos rios.
Porque é preciso voltar. Porque voltamos. E não voltamos de qualquer maneira, voltamos com a esperança de recuperar o coração em chamas por aquilo - um corpo, uma casa, uma maneira de estar no mundo - que poderíamos ter deixado, mas não deixamos. Voltamos - é um clamor - com ternura e paciência. “Sem amor uma casa está condenada”, diz um poema de Henri Cole. E quem volta, também.
Imagem da semana
Era domingo, depois do almoço, e saí de casa para esticar as pernas, beber um café e fazer a digestão - hábitos que uma pessoa depois de certa idade deve vivamente cultivar. Ia pela rua quando vi na varanda do segundo andar de um prédio um lençol colorido a tremular como uma bandeira. Parei para observar o espetáculo. A tela se endireitou, foi descendo, descendo até que, por trás dela, surgiu o rosto de uma mulher que, com os braços abertos, sustentava o lençol com as pontas dos dedos. Estava concentrada na tarefa, que realizava com destreza.
Era um dia de sol, o céu estava muito azul. Tudo aquilo durou muito pouco e ao mesmo tempo aconteceu em câmera lenta. Debruçada na varanda, com seus cabelos negros e levemente encaracolados, esvoaçantes, aquela moça parecia saída de uma tela (de Chagall, talvez) ou de um filme italiano. Cheguei a temer que ela fosse ser levada pelo vento, como a bela do romance de García Márquez. Por sorte, não.
Então a mulher terminou de pendurar o lençol no varal, colocou os pregadores pacientemente, endireitou-se, olhou para a rua e viu alguém parado do outro lado da calçada. Levantou uma das mãos, abriu um sorriso, e disse: “Já desço”. E sumiu casa adentro.
Na mesa de cabeceira
Dezembro de 1967, Gabriel García Márquez começava a ganhar fama mundial graças ao surpreendente sucesso de Cem Anos de Solidão, lançado meses antes por uma editora argentina. De Barcelona, para onde acabara de se mudar com a família vindos do México, o colombiano escreveu uma carta para o então amigo Mario Vargas Llosa.
Irmão,
Você é gigante. Acabo de ler a sua nota sobre Cem Anos publicada no El Espectador, de Bogotá, e estou simplesmente constrangido. Acho que no mundo da amizade nos valemos um pouco da generosidade, mas nem tanto, velho. É a melhor coisa que li sobre o meu romance e agora não sei muito bem onde me esconder, estou em parte angustiado, em parte envergonhado, e também muito irritado por não saber o que fazer com essa batata quente que você me lançou.
Como uma vingança involuntária, mas merecida, recebi o recorte de jornal quando acabava de ler – finalmente – Os filhotes [novela de Vargas Llosa que fora publicada em março daquele mesmo ano pela editora espanhola Lúmen], cuja leitura tinha ficado pendente em meio a tantas viagens. É maravilhoso, e pensava dizer muito mais, mas agora fico com vergonha: me dá repulsa a simples ideia de que a minha reverência pareça um gesto obrigado.
A única má notícia que tenho para dar foi a que encontrei neste mesmo jornal, perdida num cantinho: Morreu o velho Guimarães Rosa. Isto é o que já me preocupa da Espanha, esse buraco sem comunicação. Assaltas as bancas de jornais e revistas, e já de noite, cansado de ler tanta merda, descobres que continuas desinformado. A notícia da morte de Guimarães, quem eu conheci pessoalmente, me deixou um pouco atordoado.
(...)
Beijos a Patrícia [esposa de Llosa] e “à prole”. E para você um enorme abraço,
Gabo
Naquele mesmo dia, 2 de dezembro de 1967, García Márquez escreve uma carta a outro escritor e amigo, o mexicano Carlos Fuentes, e também menciona o falecimento de Rosa: “O único que me inquieta é a terrível falta de informação em que se vive aqui (…) Soube ontem, por casualidade, através de um recorte de jornal que me mandaram da Colômbia por outros motivos, que morreu o velho Guimarães Rosa. Isto me comoveu muito”.
Estas e mais duas centenas de missivas foram publicadas em Las cartas do Boom (Ed. Alfaguara), que traz a correspondência trocada entre os quatro principais nomes do boom latino-americano: Julio Cortázar, Carlos Fuentes, García Márquez e Vargas Llosa. Nas cartas, fala-se de política e literatura, planejam-se encontros e desenham-se projetos.
A primeira mensagem compilada no livro é de Fuentes para Cortázar e data de 16 de novembro de 1955. A última, um telegrama do mexicano para García Márquez, é de 14 de março de 2012. Diz assim:
Muito querido Gabriel: Parabéns pelos 85!
Pensar que nos conhecemos há meio século. Nossa vidas são inseparáveis.
Obrigado pelos teus livros.
Teu parceiro,
Carlos Fuentes
Fuentes morreu dois meses depois dessa mensagem, aos 83 anos. Em 2014, com 87, foi a vez de Gabo partir - duas décadas depois de Cortázar, que tinha 69. Vargas Llosa, o mais jovem do quarteto, tem hoje 88 anos. Em 2010 foi-lhe atribuído o Prêmio Nobel, galardão que García Márquez recebeu em 1982. A amizade entre os dois teve um final abrupto e grandiloquente, um soco desferido pelo peruano no rosto do colombiano na saída de um cinema na Cidade do México, em fevereiro de 1976. Para alguns estudiosos, o puñetazo não colocou um ponto final apenas numa relação de amizade, mas sim ao próprio boom. Embora nunca tenham falado do episódio, relatos de pessoas próximas recolhidos por jornalistas indicam que a ruptura aconteceu por ciúmes, Llosa acusou o amigo de tentar levar a sua mulher para a cama.
Frase da semana
“O cinema tem qualquer coisa de profecia. Ocorre muito comigo de que algo que se passa nos meus filmes termine sendo uma espécie de ensaio do que depois acontece na minha vida”
Pedro Almodóvar, entrevista para o El Mundo