Todos os anos uma família se reúne no Sul de Portugal para matar um fascista. Trata-se de uma tradição que passa entre gerações e que é cumprida como um dever pelos filhos e netos da primeira mulher que um dia, depois de testemunhar o assassinato de uma trabalhadora agrícola, decide eliminar um fascista. Este é o argumento da obra de teatro Catarina e a beleza de matar fascistas, escrita e dirigida por Tiago Rodrigues. A peça, que estreou em setembro de 2020 em Portugal e percorreu vários teatros pela Europa, acaba de ser publicada pela Tinta-da-China em formato de livro.
A história se passa em 2028, quando o partido da extrema-direita chegou ao poder em Portugal e está prestes a aprovar uma nova Constituição que suprime direitos e aprova políticas que excluem parte da população. A família está novamente reunida, e a jovem Catarina, de 26 anos, vai finalmente estrear na tradição de matar um fascista, o homem que escreve os discursos do líder do partido extremista. Embora tenha sido preparada a vida toda para aquilo, no momento de cumprir o ritual Catarina duvida, não é capaz de puxar o gatilho e acaba gerando um conflito dentro da família. Ela advoga que o fascista, que até então está em silêncio, com a boca tapada, tem o direito de falar.
Dar ou não voz ao fascista? O dilema que aparece na peça é também o dilema das democracias ocidentais, aponta o jornalista Gonçalo Frota no posfácio da edição da Tinta-da-Cinha. “(…) silenciar ou ouvir, permitir ou proibir o acesso às regras democráticas àqueles que pretendem destruí-las, autorizar que as ideias extremistas tenham palco e que sejam vencidas pelo bom senso ou correr o risco de que seduzam através da exploração voraz das actuais ferramentas de comunicação (sem qualquer pejo em corroer a decência, a lisura e a verdade). Esse dilema, sabia Tiago Rodrigues, já levara a que Bertrand Russell [filósofo britânico, que escreveu uma carta ao líder dos fascistas britânicos, Oswald Mosley, declinando qualquer debate entre os dois] defendesse a tese de que «discutir com um fascista não produz ideias e só promove o discurso intolerante, muito mais sensacionalista - pelo que não nos devemos sentar à mesma mesa para discutir».”
Quem não quiser saber o final da peça pare agora de ler este texto.
Na obra de Tiago Rodrigues o fascista tem voz, a história termina com um longo discurso xenófobo, machista, racista, carregado de ódio e mentira feito por ele. Por onde passou, a peça de Tiago Rodrigues provou reações do público, que se dividia entre aqueles que tentavam calar o fascista, aqueles que se levantavam e iam embora do teatro e aqueles que permaneciam imóvel e em silêncio nas suas cadeiras.
Num momento em que assistimos à morte (ou talvez ao suicídio) da democracia em boa parte do mundo, ler uma peça como essa de Tiago Rodrigues dá o que pensar. Como combater os que, usando das regras da democracia, pretende matar a democracia? Devemos dar liberdade àqueles que plantam o ódio e defendem uma sociedade que exclui e marginaliza uma boa parte da população?
“Se eu tivesse as respostas, faria política. Como não as tenho, faço teatro, faço perguntas”, disse o ator e dramaturgo numa entrevista recente. Nascido em 1977, Tiago Rodrigues é hoje uma referência do teatro contemporâneo. Já se apresentou em mais de 20 países, recebeu diversos prêmios e atualmente dirige o prestigiado Festival de Teatro de Avignon.
Catarina e a beleza de matar fascistas começa com um dos atores a se dirigir para o público e dizer: “As pessoas passam a vida a apagar fogos. Correm, cansam‑se a apagar fogos. Mas é raro pensarem: vou começar um fogo, atear um incêndio, vou queimar. É preciso. É preciso queimar. Queimar é não saber o que vai acontecer. O incêndio é imprevisível. É essa a maravilha das chamas. Quem apaga um fogo sabe como vão terminar as coisas. Fumo e cinzas e alívio. Quem ateia um incêndio faz uma pergunta ao futuro. Risco e incerteza e esperança. As chamas têm vontade própria. A mudança não tem dono. Quem começa um fogo pode acabar queimado.”
Com esta peça de teatro, Tiago Rodrigues também ateia um incêndio e faz uma pergunta ao futuro. A minha cabeça ainda continua a arder depois de ter lido o seu texto.
Na mesa de cabeceira
Se te dessem a opção de ouvir a última e inédita canção, ainda que inacabada, de John Lennon, você diria que não? E de ver um quadro que Van Gogh pintou e achou que não tinha valor? É o que acontece com En agosto nos vemos, livro que acaba de ser publicado em dezenas de países. É o último romance de Gabriel García Marquez, texto que ele, como contam os filhos no prefácio do livro, disse não prestar. Os herdeiros explicam o motivo de terem descumprido o desejo do pai, que no final da vida sofreu de uma demência progressiva. Avaliam que talvez o escritor colombiano já não tivesse as faculdades necessárias para julgar a qualidade daquilo que tinha escrito.
Além da história de Gabo e das palavras do filho, o livro traz ainda um texto do editor Cristóbal Pera com os bastidores do trabalho de edição da obra. Como grande fã de Gabo, fiquei feliz com a possibilidade de conhecer a história sobre a qual ele trabalhou nos últimos anos de vida. Não é o melhor livro de García Márquez, certamente, mas há lampejos do melhor dele e ali está a sua voz, o que permite matar um pouco de saudade (ou talvez alimentá-la, dando vontade de voltar a ler os seus livros).
No toca-discos
Vira e mexe me lembro de uma passagem de Saber perder, romance do David Trueba, em que um fracassado pai diz à sua filha adolescente: "É tão fácil fazer cagada, é tão fácil fazer tudo mal". O protagonista se referia àqueles momentos importantes da vida em que comentemos um grande erro, tomamos uma decisão equivocada que acaba fazendo mal a nós e/ou aos outros. Mas muitas vezes essa frase vem à minha mente para coisas menores, corriqueiras, pequenas “cagadas” que faço no dia a dia ou que vejo outras pessoas fazerem. Porque é realmente muito fácil fazer as coisas mal e os fatores para que isso aconteça são muitos: cansaço, desinteresse, falta de talento ou jeito, desconhecimento ou falta de noção etc.
Enfim, o normal é que elas - as coisas em geral - não sejam feitas com esmero. E é por isso que quando acontece o contrário é preciso celebrar, parabenizar os envolvidos e aproveitar o resultado. É o caso desta maravilha de disco que o Sesc editou no ano passado e que não canso de ouvir, João Gilberto - ao vivo no Sesc 1998.
Lê-se no encartem do álbum: "O som claro e limpo é consequência de uma feliz conjunção de fatores, começando pelas mais altas exigências técnicas do músico perfeccionista e passando pelo trabalho primoroso dos técnicos de som do teatro do Sesc Vila Mariana, que acabara de ser inaugurado."
Aqui o extraordinário acontece graças à feliz união entre um cara de talento e exigência absurdas com o espaço ideal e profissionais dispostos a fazer o melhor. Soma-se a isso à sorte do artista estar num bom dia (de humor, especialmente) e de nada de imprevisto ter acontecido, e temos um daqueles raros casos em que se toca a perfeição. Com o fácil que é fazer mal as coisas, esse disco do João Gilberto é uma raridade que vale muito a pena ser celebrada. Duas horas de gravação, 36 músicas, em que - contra todas a lógica - tudo sai incrivelmente bem.
Frase da semana
“As multidões já não acreditam em nada. Quando isso acontece é o fim, é a origem da violência e da loucura.”
Eric Sadin, filósofo francês, autor de “A era do indivíduo tirano”, em entrevista ao Página 12