Um dia de agosto de 1944 Clarice Lispector desembarcou em Lisboa. Tinha como destino Nápoles, onde iria viver com o marido, que recém-assumira um posto diplomático na cidade italiana. Na passagem por Portugal, a jovem de 23 anos recebeu a atenção do escritor Ribeiro Couto, embaixador do Brasil na capital lusa. No seu diário, Clarice conta que o amigo lançou-lhe desagradáveis galanteios (“horrível esse derrame lírico”) e disse ter identificado “alguma coisa áspera” na sua personalidade.
Ao ler essa história, deliciosamente contada pela Elvia Bezerra nos Cadernos de Escritores do IMS, lembrei de um crônica do Paulo Mendes Campos em que ele lista tipos de personalidades. Diz o cronista:
Há pessoas sensíveis e tímidas como os elefantes: quando a falta de saúde as desequilibra, quando uma doença qualquer vem colocá-las em uma situação de inferioridade em meio às outras, escondem-se e se fecham em um silêncio de bicho. Há pessoas antigas, belas e fora de moda como os grandes relógios de mogno; não combinam com as nossas mobílias de madeira compensada; não cabem em nossos apartamentos, em nossas ideias, cm nossas emoções; nós as respeitamos, intimidados, porque os compassos de um relógio antigo marcam dois tempos irreconciliáveis. Há pessoas lúcidas, devoradas por uma bola de fogo; capazes de uma tristeza seca, sem o consolo do enternecimento; e, no entanto, muitas delas nunca leram sequer uma página de Stendhal; consomem-se sozinhas, nessa deslumbrante e cruel supremacia do espírito.
* Todo esse texto, disponível no incrível Portal da Crônica Brasileira, é maravilhoso. Leiam!
Com todo o respeito ao mestre P.M.C, decidi pegar carona na sua crônica e listar alguns tipos de pessoas que conheci nessa vida.
Humanário
Há pessoas perigosas e atraentes como o fogo e outras indecifráveis como o mapa do metrô de Paris. Há pessoas delicadas e avessas ao auxílio tal qual as borboletas quando se debatem numa esquina da sala.
Há pessoas que foram engolidas pelo próprio ego e outras que são incapazes de se olhar no espelho. Há pessoas mais frágeis que uma taça de cristal, quebram-se até com a mudança de temperatura. Conheci uma pessoa que já tinha visto as coisas mais horríveis do mundo, inenarráveis, e nunca tinha se quebrado. O seu segredo era dormir sempre com um surrado travesseirinho que ganhou da mãe quando tinha quatro anos.
Há pessoas que nunca mudam, como há as que nunca permanecem iguais. Há pessoas que trazem dentro de si uma alegria que sobrevive mesmo sem ser regada, carregam consigo o sol; e há aquelas incapazes de produzir luz mesmo com todo o ambiente favorável.
Conheci pessoas que demonstram afeto das maneiras mais tortas possíveis, me enternecem.
Há pessoas que nasceram para dar e que têm muita dificuldade em receber, e também o contrário (mas é possível - e aconselhável - exercitar os dois lados). Há as que não conseguem viver em terra firme e àquelas incapazes de levitar. Pessoas que ficam onde são colocadas e outras que não conseguem permanecer por um momento no mesmo lugar.
Já vi pessoas de todo jeito, abjetas e fascinantes, indecifráveis e transparentes, côncavas e convexas, mesquinhas e generosas, quentes e frias, silenciosas e barulhentas, ásperas e fofas, geniais e medíocres, belas e horríveis. Mas o que nunca vi, e ainda bem, foram duas pessoas iguais.
Na mesa de cabeceira
Em 2020, ano do centenário de Clarice, brotou na Espanha o livro De Natura Florum, com textos dela e ilustrações da artista basca Elena Odriozola (a ideia desse herbário, assim como a tradução para o espanhol, é do escritor argentino Alejandro García Schnetzer).
No texto, publicado originalmente em 1971 no Jornal do Brasil, Clarice lista uma série de plantas e lhes atribui características humanas. As violetas, por exemplo, são introvertidas. As orquídeas são formosas, porém antipáticas, e as azaléias são leves, espirituais e felizes. Já os cravos têm uma certa agressividade proveniente das suas ásperas e arrebitadas pétalas, e uma beleza violenta.
Suspeito que se uma planta escrevesse um humanário diria que Clarice é um cravo.
De Natura Florum foi publicado no Brasil em 2021 pela Global Editora.
No toca discos
A revista Piauí lançou a série A longa arte de Tom Jobim, em que o violonista, compositor e crítico literário Arthur Nestrovski, com a ajuda de Paula Morelenbaum, destrincha o universo jobiniano. Já vai pelo segundo episódio ( de seis) e eu estou adorando.
Frase da semana
"Segundo os pesquisadores, podemos perder o Pantanal (a maior planície alagada do planeta) até o final do século.”
Marina Silva, ministra do Meio Ambiente, durante sessão no Senado brasileiro
Eu adorei mesmo ler esse texto hoje! Eu era alguém desesperançosa, desesperançada nesse domingo. Sorri várias vezes. Printei. Sorri de novo e lembrei que já havia lido esse Paulo Mendes. muito bom!😊
Muito massa! Cada tipo, dependendo da luz e da angulação, pode parecer outro. Legal pensar que quem sempre parece fogo, eventualmente pode ser um pouco d'água tbm heheh