Voltei a jogar futebol. Deve ser a vigésima vez que volto a jogar futebol depois de jurar para mim mesmo que nunca mais calço um par de chuteiras. De cada vez que me lesiono (já foram duas cirurgias e algumas temporadas com o pé imobilizado e andando com muletas), anuncio em silêncio o final da minha carreira - e ninguém sente falta. Mas então começo literalmente a sonhar que estou jogando bola e desisto de desistir.
Normalmente os regressos aos gramados têm um sabor agridoce. É bom voltar, porque adoro jogar futebol, mas essa sensação é sempre acompanhada de uma crescente frustração porque percebo que cada vez sou mais lento e limitado em campo. Só que desta vez foi diferente, voltar depois de quase seis meses de “aposentadoria” foi especialmente prazeroso porque as minhas expectativas estava lá embaixo. Fazer gol, ajudar o meu time a ganhar, acertar passes e dribles, isso era o de menos, eu só esperava conseguir sair de campo intacto, sem me machucar. Então, quando soou o apito final (o administrador do campo realmente apita quando dá uma hora de jogo) e percebi que eu ainda estava inteiro, foi como ter ganho a Copa do Mundo.
Será que é o segredo para estarmos bem é esse, botar a fasquia bem baixinha? Sei que soa bem pouco ambicioso, mas talvez o caminho seja por aí, não fazer grandes planos, não sonhar muito alto, não se cobrar tanto, ter como meta algo realizável.
Um amigo meu conta que foi buscar a filha no primeiro dia de aula. Tinham deixado o telefone com a diretora da escola, para o caso de que fosse preciso resgatar a menina antes. O dia passou, ele cada vez mais apreensivo, mas nada aconteceu. Então na hora combinada, no papel de pai, lá estava ele esperando à porta do colégio. Ela parecia que vinha contente, pegou na mão dele e foram andando pela rua. “E então, filha, como foi o primeiro dia?", ele se atreveu a perguntar. E a pequena respondeu: “Foi ótimo, papai, não bati nem apanhei de ninguém”.
Para mim é uma frase muito sábia porque carrega um ambicioso propósito de vida. Um dia em que não agredimos nem somos agredidos por ninguém (no trabalho, nas relações afetivas, no futebol etc) é um ótimo dia. Terminar a jornada sem se sentir injustiçado nem injusto com ninguém, chegar em casa ileso, deveria ser a nossa meta diária. E o que vier além disso será, certamente, lucro.
No toca-discos
Esta semana soltaram a primeira música do futuro disco da Esperanza Spalding cantando com e para o Milton. Num vídeo promocional desse trabalho, que tem previsão de lançamento para dia 9 de agosto (estou contando os dias), a jazzista norte-americana aparece dizendo para que quando escuta a voz, as melodias e as letras de Milton Nascimento ela sente que como se estivesse voltando para casa. Achei um jeito muito bonito de dizer para alguém que o ama muito.
Autopromoção
Já que o assunto é expectativa, publico aqui o epílogo do meu livro sobre a Revolução dos Cravos - foi publicado em espanhol (México e América Latina hispânica), mas não em português - onde falo sobre o que sonhava construir e o que consegui entregar aos leitores.
Epílogo
Depois de três dias e três noites lutando contra um espadarte em alto mar, Santiago finalmente retorna à casa. Cansado e ferido, o protagonista de O velho e o mar, novela de Ernest Hemingway, atraca o seu pequeno barco no porto da vila. Presa à sua embarcação por uma linha está a sua caça. Do enorme peixe que tinha fisgado - tão grande que era impossível içá-lo para dentro do barco - sobrou pouca coisa. No trajeto até a costa, o espadarte tinha sido devorada por tubarões. Santiago até tentou se defender dos ataques, espantou uns quantos agressores usando o que tinha à mão (um arpão, o remo e uma faca), mas era uma luta desigual; eles eram muitos, e ferozes, e o pescador estava só, esgotado e desarmado. Daquele magnífico peixe, o maior já pescado por Santiago e talvez por qualquer um daquela zona, só restou a cabeça, com o seu enorme bico em formato de espada, e o esqueleto.
No final da epopeia o que o velho trouxe para casa era um fantasma, o cadáver do imponente e valente espadarte contra quem pelejara. Mas era também a prova de um duelo, quem olhasse para aquela carcaça seria capaz de imaginar o tamanho e a imponência do bicho e a dificuldade em atrapá-lo. “Me derrotaram, Manolin, a verdade é que me derrotaram”, diz Santiago ao seu amigo aprendiz de pescador. “Não, ele não te derrotou”, responde o jovem. E o pescador concorda: “É verdade, foi depois.” Durante três dias e três noites, Santiago resistiu à fome, à sede, ao frio, às feridas nas mãos e ao cansaço, e foi feliz ao pensar no respeito e admiração que conquistaria ao chegar à vila com aquele peixe. Venceu o duelo, fisgou e dominou o enorme bicho. Se foi derrotado, foi depois.
Enquanto trabalhava neste livro, imaginei a sua forma e conteúdo, desfrutei com a ideia de que seria lido, que agradaria e até emocionaria algumas pessoas. Como o pescador de Hemingway, após uma longa batalha cheguei ao final da jornada com muito menos do que almejava. Quis escrever sobre a última revolução vivida na Europa, e sonhava com ser capaz de contar isso a partir de dentro, transmitindo a respiração e o pulsar do que ocorreu. O meu desejo era, nas palavras da jornalista bielorrusa Svetlana Alexijevich, chegar até a “alma dos acontecimentos” e descrevê-la. Se o que sobrou dessa quimera for suficiente para que a grandeza e beleza dessa história sejam imaginadas, não terá sido em vão.
Frase da semana
“Foi uma experiência única. Aconteça o que acontecer daqui em diante, será uma linda recordação”
Mateo Apolonio depois de estrear, aos 14 anos e 29 dias, pelo Newell’s Old Boys e se tornar o mais jovem a debutar na primeira divisão do futebol argentino
Rá! Daí que toda ruindade vale a pena. Segui com o mesmo ritmo quando voltei depois de quase um ano parado. Quem é grosso nunca desaprende!