O dia mal começara, eu tinha acabado de abrir a janela do quarto e ouvi o som lá longe. Me debrucei na varanda e avistei no alto da rua o rapaz empurrando a sua bicicleta. Desceu uns metros mais, parou na esquina, levou a gaita à boca e fez soar a melodia. Olhou para os lados à procura de alguém que quisesse os seus serviços, levantou a vista e me viu no segundo andar do prédio. Cruzamos olhares, ele esperou por um gesto meu que não veio. Então guardou a harmônica no bolso, subiu na bicicleta e seguiu o seu caminho.
Ainda permaneci na varanda certo tempo, intrigado com a felicidade que aquela aparição matinal me causara. Era algo banal, corriqueiro, apenas um homem tentando ganhar o sustento de forma bastante primária: em troca de umas moedas afiava uma faca. Antes de entrar no chuveiro ainda ouvi pela última vez o som da sua gaita bem distante.
Passei a infância a adolescência numa cidade muito pequena e pacata, conheço e reconheço os sons dos vendedores ambulantes. Hoje vivo numa cidade turistificada, uma cidade que está perdendo rapidamente a sua identidade, em que as relações de vizinhança, a cultura da vida de bairro já quase não existem. Talvez tenha sido por isso o meu espanto, no meio disso tudo ainda há resquícios dessa vida de antes, ainda há amoladores de faca. Enquanto eles existirem, enquanto houver quem necessite do seu serviço, a cidade não terá morrido de todo.
Vi estes dias um vídeo de um grupo de jovens num penhasco à beira do mar. Vão de tronco nu, descalços, provavelmente estão passando as férias numa praia qualquer que eu apostaria ser de um país da Europa. Cinco ou seis deles carregam uma enorme pedra enquanto duas dezenas acompanham a tarefa. Pousam a pedra bem na beirada do rochedo e com os pés a empurram. A pedra rola e despenca, viaja muitos metros até impactar com água e levantar ondas. Os jovens gritam de felicidade. A legenda do vídeo era: Homem jogar pedra n’água. Homem ser feliz.
Há gestos que remetem a outros tempos, como fazer fogo (acender uma churrasqueira ou uma lareira), atirar uma pedra num rio, transformar um ramo de árvore num bastão. São atemporais, existem antes de nós estarmos aqui e existirão quando já não estivermos, assim como o amolador de facas com a sua gaita.
No toca-fitas
Esta semana foi lançado o vídeo do pequeno concerto que o Milton Nascimento e Esperanza Spalding fizeram para o Tiny Desk, famoso programa da NPR (rádio pública dos Estados Unidos) em formato acústico. Normalmente os shows são feitos no estúdio da rádio em Washigton, mas por causa da idade de Milton o encontro teve lugar na casa dele. E hoje, 9 de agosto, sai o disco que eles fizeram. Promete…
Obs: Difícil não se apaixonar pela Esperanza Spalding falando português.
Na mesa de cabeceira
Leia estes dias uma coletânea de poemas da poeta polaca Wislawa Szymborska, Prêmio Nobel de Literatura, publicada em Portugal pela Relógio D’Água. A tradução de “Paisagem com grão de areia” é de Júlio Sousa Gomes.
E deixo aqui dois poemas que me tocaram.
Admiração
Porquê tanto a uma só pessoa?
A esta e não a outra? E que faço eu aqui?
Num dia que dizem terça-feira? Em casa e não em ninho?
Com pele e não com escamas? Com cara e não folha?
Porquê pessoalmente só uma vez?
E logo na Terra? Junto a uma estrela pequena?
Depois de Estar ausente tantas eras?
Para além de todos os tempos e algas?
Para lá do pólipo e da medusa?
E logo agora? Para o sangue e os ossos?
Só comigo em mim? Por que
não mais além ou cem milha daqui,
ou ontem ou há um século
sentada e olhando o canto escuro
- tal como de focinho erguido de repente
olha um que rosna e a que chamam cão?
Regressos
Voltou. Não disse nada.
Mas era claro que tivera algum azar.
Deitou-se vestido.
Pôs a cabeça debaixo do cobertor.
As pernas encolhidas.
Anda pelos quarenta mas não neste momento.
Está mas apenas tanto quanto no ventre da mãe,
para lá de sete peles, na proteção do escuro.
Amanhã dará uma conferência sobre a homeostase
na cosmonáutica metagaláctica.
Por agora, enrolou-se, adormeceu.
Frase da semana
“Estava pensando nas receitas que vou fazer quando eu voltar para o Brasil”
Rebeca Andrade, ao responder sobre o que passava em sua cabeça enquanto aquecia para disputar a medalha de ouro na prova de ginástica de solo nos Jogos Olímpicos de Paris
Esse vídeo do Milton com a Esperanza é uma pequena joia.
Deliiicia demaaais ler seus textos Viel...
Todas as bênçãos para você