Nem o amor, nem o poder, tampouco o destino. Nem sequer os sonhos. O assunto filosófico-literário que mais me fascina é a caprichosa, aleatória e enigmática memória. Por que esquecemos coisas que gostaríamos de lembrar e nos lembramos de coisas que não precisamos (ou diretamente não queremos) recordar?
Talvez me atraia tanto esse assunto justamente por ausência, a minha memória é terrível. Por exemplo, de viagens que fiz há não muito tempo, quase não resta nada além da sensação de terem sido agradáveis - ou nem tanto. Pelo caminho fui perdendo, esquecendo nomes (dos lugares, dos pratos que provei, da gente que conheci), histórias, imagens e impressões. Da quase totalidade das pessoas com quem convivi por anos na escola, na faculdade, em trabalhos, não guardo qualquer lembrança. Quando vejo uma foto minha nessas circunstâncias é desconcertante, é como se outra pessoa tivesse vivido aquilo em meu lugar.
Sinto-me frustrado com isso, em especial quando estou com quem me conta com pormenores situações que fazem parte da minha vida e que não me lembro. E por ser assim, acabo por preencher as lacunas da memória com ficção.
No livro com entrevistas que fiz a escritores e escritoras (lançado no Brasil em 2020 com o título Sobre a ficção - conversa com romancistas), a questão da memória é assunto frequente. E foi a portuguesa Dulce Maria Cardoso quem me fez ver que às vezes é melhor não lembrar de tudo. Dona de uma memória privilegiada, a autora de O Retorno demonstra que recordar pode ser um castigo. “É como visitar cemitérios. Estou sempre a sobrepor coisas que aconteceram há dez, vinte, trinta anos, e evidentemente são mortos, são pessoas que já deixaste de ver, que já não se dão contigo, e tu sabes exatamente o que elas fizeram, o que disseram, o que aquela pessoa contou e o que comeu naquele dia.”
Uma das funções da memória é esquecer. Não é à toa que quando vivemos um acontecimento traumático (um acidente, uma notícia dilacerante) o corpo muitas vezes apaga. Desmaiamos para não termos que ver e/ou viver aquilo. E logo, para não nos lembrarmos. O famoso Funes, o memorioso, personagem de um magistral conto do magistral Borges, é a prova de que a vida sem o esquecimento é insustentável.
Mas não haverá forma de comandarmos a memória, de deixarmos de ser reféns dos seus caprichos? Algum mecanismo para escolhermos o que recordar, e de que forma, e o que esquecer, e quando? João Cabral de Melo Neto, pelo menos uma vez, tentou ter o controle sobre a própria memória. O poeta caminhava um dia por Sevilha, cidade que tanto amava, ao lado de alguém de quem (pelos vistos) gostava muito, e decidiu capturar recordações para libertá-las quando tivesse saudades (de uma e da outra, cidade e mulher).
Pelo menos foi assim que ele contou neste poema publicado em Museu de tudo.
O PROFISSIONAL DA MEMÓRIA
Passeando presente dela
pelas ruas de Sevilha,
imaginou injetar-se
lembranças, como vacina,
para quando fosse dali
poder voltar a habitá-las,
uma e outras, e duplamente,
a mulher, ruas e praças.
Assim, foi entretecendo
entre ela, e Sevilha fios
de memória, para tê-las
num só e ambíguo tecido;
foi-se injetando a presença
a seu lado numa casa,
seu íntimo numa viela,
sua face numa fachada.
Mas desconvivendo delas,
longe da vida e do corpo,
viu que a tela da lembrança
se foi puindo pouco a pouco;
já não lembrava do que
se injetou em tal esquina,
que fonte o lembrava dela,
que gesto dela, qual rima.
A lembrança foi perdendo
a trama exata tecida
até um sépia diluído
de fotografia antiga.
Mas o que perdeu de exato
de outra forma recupera:
que hoje qualquer coisa de uma
traz da outra sua atmosfera.
* Chico Buarque lê O profissional da memória.
Ao que parece é possível capturar memórias, ainda que a fragilidade e volatilidade da presa faça com que o seu aprisionamento seja uma tarefa complexa. Ainda assim, tentarei seguir a receita do poeta e começarei a caçar as que, por direito, me pertencem.
Na mesa de cabeceira
“Quando se sofre com essa forma tão pelicular de brutalidade que é a má memória, o passado tem uma consistência quase tão irreal do que o futuro”, escreve Héctor Abad Faciolince logo no prólogo de Traiciones de la memoria. Nesse livro, mescla entre ensaio, conto e autobiografia, o escritor colombiano remexe o baú do passado para refletir sobre acontecimentos importantes e traumáticos (como o assassinato do pai) da sua vida.
“Se olho para trás e tento recordar os acontecimentos que vivi, os passos que me trouxeram até aqui, nunca estou completamente seguro de se estou rememorando ou inventando (…) O que já aconteceu e o que está por vir, na minha cabeça, são apenas conjecturas”, escreve.
Pelos vistos, a minha memória pode ser considerada boa se comparada com a do Héctor. Numa entrevista em que lhe fiz, me contou, se divertindo, que é comum ir a um restaurante, pedir um prato e ser repreendido pela mulher: “Por que você pede isso se sabe que não gosta? Nós já viemos aqui, você já pediu esse prato e não gostou.” Constrangido, mantém o pedido argumentando que “talvez agora goste”. Quando prova o prato, dá o braço a torcer e reconhece ter se esquecido de que não aprecia aquela comida.
O curioso é que Héctor tem memória de peixe para certas coisas, mas depois é capaz de dizer poemas inteiros de outros autores, citar frases e livros. A memória é mesmo muito enigmática.
Frase da semana
"Dentro de mim sou um campo de ruínas. A fachada é sólida, mas por trás dela..."
Gisèle Pelicót durante o julgamento do ex-marido que, durante uma década, a drogou e ofereceu o seu corpo para que 50 outros homens a violassem. A francesa abriu mão do anonimato e pediu para que o julgamento fosse público
Ricardo, a memória me fascina também. Por isso, talvez tenha tanto medo de perdê-la. Adoro seu livro de entrevistas e a Dulce foi uma linda surpresa. 😊🤗
Es verdad, mi querido Tocayo, la memoria es muy enigmática. Excelentes referencias con estos autores, tan grandes como tú, que entrevistaste en tu fenomenal libro "Simuladores de vuelo". Un abrazo!