Em Shakespeare - a invenção do humano, Harold Boom defende a ideia de que a psiquê humana foi forjada a partir da obra do dramaturgo inglês. Segundo o crítico norte-americano, mais do que ajudar a entender a essência do ser humano, Shakespeare a inventa - no sentido em que explora a nossa alma e chega a lugares nunca antes descobertos. É por isso que, defende Bloom, mesmo quem nunca leu ou assistiu a uma peça de teatro de Shakespeare, é seu herdeiro e devedor, uma vez que foi educado a partir do universo criado pelo autor de Hamlet.
Tive um professor espanhol que dizia que era católico, embora não acreditasse em Deus. Explicava que ter nascido na Espanha, na primeira metade do século XX, na família em que nasceu e no contexto social em que viveu, fazia dele uma pessoa católica. Acreditar ou não em Deus era um detalhe.
Faço essa introdução para dizer que hoje tenho claro que Chico Buarque é um dos responsáveis diretos pela minha forma de ver o mundo. A minha maneira de entender o amor, as dores e os prazeres da vida, as injustiças, a maldade e a bondade humanas passam pelas canções escritas por esse gigantesco criador.
“Sou o suficientemente ingênuo para ler sem cessar porque não posso por mim mesmo conhecer bastante gente de forma bastante profunda”, escreve Bloom no ensaio que já citei. Isso me parece evidente, lemos para suprir a curiosidade e carência/necessidade que temos de viver outras vidas. As músicas de Chico Buarque também tiveram para mim esse efeito, elas me colocaram na pele de outras pessoas e em cenários e circunstância que desconhecia. Antes de me apaixonar, eu soube por ele da maravilha e do perigo que isso significava. Quando aconteceu comigo foi uma descoberta mas também um reconhecimento, uma confirmação daquilo que eu já tinha ouvido o autor de Trocando em Miúdos cantar.
Faz uns anos estive na Ilha do Sal, em Cabo Verde, num festival literário. Numa das noites fui a um bar com um grupo de escritores. A conversa estava chatíssima, havia um poeta que só falava de si e dos seus “feitos” literários. Paguei a minha parte e me escapei, sai para caminhar um pouco sem rumo até que ouvi ao longe uma música, que me fez ir em sua direção. Então cheguei a uma praça onde um trio de jazz tocava para algumas dezenas de pessoas. Demorei um pouco para reconhecer a melodia, que soava familiar. Era uma versão instrumental de Bye Bye Brasil. Comecei a cantarolar baixinho a letra e fui tomado por uma sensação difícil de descrever. Não fazia frio nem calor, eu não tinha sede nem fome, nem cansaço, também não tinha pressa e nenhuma preocupação. Lembro de ter olhado para o céu estrelado e pensado que queria que aquele momento nunca acabasse. Sozinho, numa ilha no meio do Atlântico, eu sentia uma enorme felicidade por aqueles músicos tocarem, naquele instante, aquela canção, para mim.
PS: A melodia de Bye Bye Brasil é de Roberto Menescal e a letra é do Chico e foi feita para o filme homônimo dirigido pelo Cacá Diegues em 1979. Neste vídeo Menescal conta sobre essa parceria, a única entre os dois músicos.
No vídeo-cassete
Annie Ernaux: os anos super 8 é um filme simples, delicado e profundo em que a protagonista, escritora consagrada vencedora do Prêmio Nobel, reflete sobre o seu passado a partir de imagens familiares de meio século atrás. Enquanto vemos fragmentos de momentos felizes de uma família - viagens, passeios, festas - uma voz comenta o que não se vê: aquela esposa e mãe guarda dentro de si o desejo e a urgência de escrever.
Faz uns anos, uma prima conseguiu recuperar uma fitas VHS com imagens de encontros familiares do final dos anos 80 e começo dos 90. Foi muito emocionante rever aqueles que já partiram (entre eles o meu tio, cameraman da família), ver os meus pais com a idade que tenho hoje e observar a criança que um dia fui. O filme da Annie Ernaux me fez recordar essa minha viagem ao passado e pensar no importante e impactante que elas são.
Frase da semana
“Vivemos um momento muito importante da história do país (…) e temos a oportunidade de escolher o nosso futuro”
Kylian Mbappé, capitão da seleção francesa de futebol, ao apelar pelo vota contra a extrema-direita no segundo turno das eleições
Como assim? Já acabou?
Eu queria mais dessa leitura encantadora...