Conta Eric Nepomuceno num de seus livros a história de um pintor que visita com frequência um museu onde há uma obra sua exposta. O artista vai sempre vestido com um sobretudo e por baixo leva a sua aquarela. Quando a segurança do local se distrai, ele pega o pincel e retoca o seu próprio quadro. Não parece que um dia ele dará a tarefa por terminada.
Que difícil é lidar com o final de algo que durante anos desejamos muito realizar, não é verdade? Por que construir uma obra com o bonito que é sonhá-la, se pergunta Passolini no final de Decameron. Poderia citar o nome de dezenas de criadores que confessam não ouvir as músicas que fizeram, assistir aos filmes em que aparecem ou ler os livros que escreveram.
Quando tinha 18 anos e nem podia sonhar que um dia viria a ser um renomado fotógrafo, Daniel Mordzinski foi convidado para trabalhar como assistente num filme sobre a vida de Jorge Luis Borges. O então estudante de primeiro ano do curso de cinema aceitou o convite e levou consigo a câmera fotográfica do pai. Num intervalo das filmagens, fez uma foto do autor de O Aleph. Borges está sentado de perfil, veste um terno escuro, gravata e uma camisa branca, e tem as duas mãos apoiadas na bengala. Olha, com seu olhar partido de cego, para o horizonte. No canto superior esquerdo da foto há um foco de luz e na parte direita surge uma mão que parece apontar para algo.
Por causa dessa mão, a foto permaneceu décadas inédita. Mordzinski considerava que esse elemento estranho provocava muito ruído, estragava a foto. Até que um dia, preparando uma exposição, o fotógrafo reviu a imagem e se reconciliou com ela. Percebeu que era justamente essa imperfeição que fazia daquele algo mais do que apenas mais um retratos do genial escritor argentino. “A foto não havia mudado, mas eu sim”, me disse Mordzinski.
Em tempos em que a Inteligência Artificial promete a perfeição (sugiro a leitura deste texto do Sérgio Rodrigues na Folha), devemos ter mais carinho pelo imperfeito. Talvez seja isso que nos salvará da robotização do mundo. Os robôs não falham, os robôs não duvidam, não se atrasam. No mundo perfeito controlado pelas máquinas não há lugar para o imprevisto, a Inteligência Artificial nunca escolherá o caminho errado, o robô de cozinha nunca colocará um ingrediente a mais - ou esquecerá de colocar - numa receita (quantas novas receitas não surgiram desta forma?). Os computadores nunca deixarão de trabalhar por estarem apaixonados ou por terem sido abandonados por alguém. E, portanto, nunca criarão algo belo - um poema, uma canção, uma escultura - por esses motivos.
No toca-fitas
Na canção Meio-de-campo, Gilberto Gil manda uma mensagem ao “prezado amigo” Afonsinho, ex-jogador de futebol. O baiano faz uma ode ao imperfeito e diz que a sua meta não é chegar à perfeição, mas apenas aperfeiçoar o imperfeito.
Na mesa de cabeceira
Esta semana me acompanha antes de dormir os versos do poeta mexicano José Emilio Pacheco (Cidade do México, 1939 - 2014), mais especificamente os de um livro publicado em 1971 que tem um título lindo “No me preguntes cómo pasa el tiempo”. Escolhi alguns poemas do José Emilio Pacheco e os traduzi, aqui vai:
Memoria
Não leve muito a sério o que te diz a memória. Talvez aquela tarde nunca tenha existido. Talvez tudo tenha sido autoengano. A grande paixão existiu só no teu desejo. Quem garante que não te estás contando ficções para prolongar o adiamento do fim e fingir que tudo isso teve ao menos algum sentido.
A flecha
Não importa que a flecha não acerte o alvo. Melhor assim. Não capturar nenhuma presa, não machucar ninguém, porque o importante é o voo, a trajetória, o impulso o pouco de ar que recolheu ao subir a escuridão que desocupa ao cravar-se, vibrante, na extensão do nada.
Não me perguntes como passa o tempo
Minhas pegadas já se perderam no pó do mundo;
afasto-me sem retroceder.
Não me perguntes como passa o tempo.
Li Kiu Ling
O inverno alcança o lugar que foi nosso
E cruzam pelo ar os bandos que emigram.
A primavera renascerá depois,
as flores que plantaste reviverão.
Mas só que nós
nunca mais veremos
a casa entre o nevoeiro.
Ohhhwn Viel !!!!!
Que lindo !!!
Que leve !!!!
Que lúdico !!!!
Um bálsamo na alma este olhar especial que transmite em tudo que escreve.
Parabéns!!!
Muita sensibilidade 🙏🙏🙏🙌🙌