No prólogo de Los conjurados, último livro que escreveu, Jorge Luis Borges afirma: “Com o passar dos anos percebi que a beleza, assim como a felicidade, é frequente. Não passa um dia sem que estejamos, um instante, no paraíso. Não há um poeta, por mais medíocre que seja, que não tenha escrito o melhor verso da literatura, e também os mais desprezíveis. A beleza não é privilégio de uns quantos ilustrados.”
O monumental autor argentino, que morreu em 1985 (aos 86 anos), viveu os últimos trinta anos da sua vida sem enxergar. Me impressiona pensar que alguém que passou décadas impedido de fazer o que mais amava (ler um livro), tenha chegado ao final da vida defendendo a ideia de que todos os dias, pelo menos por um instante, estamos num paraíso.
Em 2018, Manuel Vilas publicou Ordesa, romance que em Portugal ganhou um novo e belo título: Em tudo havia beleza. Nesse livro, um homem de meia idade reflete sobre a perda dos pais, a solidão, o fracasso nas relações de amor (com a ex-mulher, com filhos), a passagem do tempo, a falta de um propósito na vida. E ainda assim, escrito numa prosa poética, o que ele conta - e como conta - é belo. “Comecei a escrever esse livro em maio de 2014, uns dias depois da morte da minha mãe. Me divorciei na mesma época. Naqueles meses fui visitado por uma montanha de sentimentos que não sabia que existiam, eu tinha um ar espectral. E apesar de ver fantasmas por todos os lados, havia beleza nas despedidas que eu estava vivenciando”, contou o espanhol.
Há uns anos eu estava passando por um momento complicado da vida e ouvi de um amigo o seguinte conselho: “Tenta ver o que você está vivendo agora com uma distância, em perspectiva. Você vai ver que não é tão grave quanto parece”. Aquelas palavras me serviram - e ainda servem - para tirar o peso das coisas, para ajudar a ter calma e paciência ao enfrentar tormentas (que, quando vistas de longe, guardam beleza). Enfim, talvez o velho Borges tenha razão e mesmo num dia ruim, de uma semana ruim, de um mês ruim, haverá um momento belo, uma faísca de alegria, um instante no paraíso.
No toca-fitas
Tenho ouvido insistentemente nos últimos dias o álbum Modo Livre, do Ivan Lins. O disco é de 1974 e nesse ano o Ivan Lins estava voando baixo. Não tem uma música mais ou menos nesse álbum. Tenho ido de manhã para o trabalho ouvindo-o. Vou pela rua sem pensar em nada, só escutando e sentindo a música (às vezes cantando junto baixinho), e desfrutando do meu fugaz paraíso diário.
Na mesa de cabeceira
Leio Faca, o livro do Salman Rushdie sobre o atentado que sofreu há dois anos. Foram 15 facadas, em 27 segundos, por ter escrito em 1989 um romance que ofendeu algumas pessoas que professam uma religião. O agressor não leu o livro que rendeu ao escritor essa “condenação” à morte.
O subtítulo do livro, “uma meditação após uma tentativa de assassinato”, dá uma boa ideia do que irá encontrar quem o escolher. Escreve Rushdie logo no início de Faca:
Lembro de estar deitado no chão e ver se alastrar o charco do sangue que saía do meu corpo. É muito sangue, pensei. E em seguida pensei: Estou morrendo. Não me pareceu dramático, nem particularmente terrível. Pareceu-me apenas provável (…)
É muito raro alguém conseguir descrever uma experiência de quase-morte. Deixem que diga primeiro o que não aconteceu. Não houve nada de sobrenatural. Nenhum “túnel de luz”. Nenhuma sensação de sair do corpo. De fato, poucas vezes me senti tão fortemente ligado ao meu corpo. O meu corpo estava morrendo e me levava com ele. Era uma sensação intensamente física.
Nota: Embora esteja lendo o livro em português (em Portugal saiu pela D.Quixote, no Brasil a editora é a Companhia das Letras), escolhi esta capa da edição em inglês (Random House) porque achei bonita demais.
Frase da semana
“Para mim, o conceito de força, na música, tem a ver com o fato de você ser capaz de provocar um impacto no ouvinte. É uma eficácia, e nisso o Milton não perdeu nada (…) Pensávamos que era a técnica, a potência, mas era ele”
Esperanza Spalding, jazzista norte-americana que lançou na semana passada um álbum em parceria com Milton Nascimento, em entrevista à Folha
Tuas palavras já fizeram meu dia aqui no Brasil começar com muita beleza e leveza. Saiu um sorriso aqui sozinha olhando pra tela de um pc. Gracias e um ótimo dinal de semana pra ti!